Páginas

6.11.06

CABRAL FILHO, José S. Um futuro além da transgressão.

Interação: o objeto artístico apresenta um alto grau de abertura (que podemos chamar de informalidade), podendo ser alterada por outras pessoas que não o artista.
Seu apelo social é o apelo da inclusão, da participação não especializada, de um engajamento lúdico necessário a uma arte cada vez mais distanciada do público leigo.
O papel do artista, aqui, adquire uma dupla função: programar o modo e o grau de abertura da obra.

Automação: a forma final do objeto artístico é determinada pela transformação de um gesto (input) significativamente simples em um resultado absurdamente complexo se comparado ao gesto inicial. O processo de transformação do gesto em obra se dá através de uma seqüência de operações mecânicas, quer seja de uma máquina física (que opera e articula partes físicas) ou uma máquina conceitual (que opera e articula símbolos, como o software), ou ainda pela conjugação dos dois (como nos sistemas computadorizados).
Seu apelo social é o apelo da liberação, a delegação do trabalho a uma outra entidade, não
humana, porém mais especializada.
Neste caso, o papel do artista é programar a seqüência de operações algorítmicas e especialmente seu processo re-iterativo (o modo de sua repetição, ou seja o ponto onde ele sofre uma retro-alimentação e opera um loop).

Ambas apontam para a idéia de obra aberta.

O impulso que origina a interatividade é o desconhecimento do outro: interagimos porque não sabemos o que se passa dentro do outro. Neste sentido, interatividade é um ataque à nossa solidão perante o outro.

O impulso que origina a automação é o nosso desconhecimento dos processos vitais: buscamos construir autômatos, porque não compreendemos a origem da vida (e por extensão, a finalidade da morte). E temos a esperança de que por meio da simulação possamos compreender este mistério.
Nesta perspectiva automação é um combate à nossa solidão
perante Deus.

A interatividade diz respeito ao acesso ao outro, (refletindo nosso embate com a questão da alteridade) e a automação diz respeito ao nosso acesso ao mundo, (refletindo o nosso embate com a questão do conhecimento).

***Dúvida: Há mesmo essa tal abertura para o imprevisto? Ou será que todas as possibilidades de conformação já não estão previstas na conformação da obra?

Há um momento crucial na história da cultura ocidental que certamente joga alguma luz sobre o assunto: o instante em que, no teatro grego, é consolidada a distinção entre palco e platéia. Como os teóricos canadenses Pérez-Gómez e Pelletier assinalam, o que marca tal separação é o estabelecimento de uma distância operativa que distingue atores, autor e público. Esta separação é de fundamental importância para o desenvolvimento do teatro ao estabelecer a idéia de autoria, abrindo espaço para uma configuração mais racional do espetáculo. O custo deste avanço é, exatamente, um desengajamento corporal que cede espaço para uma predominância dos aspectos visuais. Ou seja, há uma perda da participação corporalmente plena de todos os envolvidos no espetáculo. Em maior ou menor extensão, esse modelo vai marcar todo o desenvolvimento e avanço da arte e da cultura do ocidente. A novidade do teatro grego assinala, de fato, o afastamento de um outro modelo de manifestação quer eram os rituais, em que todos os participantes se engajavam de forma plena.

Isto se torna absurdamente claro num espetáculo de dança contemporânea, no qual os artistas exercitam seus corpos em elaboradíssimos movimentos diante de uma platéia que, inversamente, tem os seus movimentos corporais restringidos à estaticidade das poltronas. A platéia ganha em experiência crítica e mesmo estética, mas perde em experiência física.

Transgressão: há um ganho enorme que é a abertura para a incerteza, um vetor em direção ao novo. E há uma enorme vantagem em termos a incerteza em nosso horizonte, pois só assim podemos “evoluir”, se é o que queremos.
Queremos a re-inserção do corpo e o conseqüente afastamento da predominância visual no âmbito de nossa prática artística; mas não queremos perder a possibilidade da transgressão.

O jogo
O jogo é uma atividade ritual especial que traz em si um quase paradoxo (sob a ótica do rito): admite em si a idéia de permanência e engajamento corporal, sem no entanto perder o vetor em direção ao aberto, ao imprevisto. O resultado final de um jogo é necessariamente sempre da ordem da imprevisibilidade, caso contrário o jogo terá sido fraudado. Em suma, o jogo pode ser visto como uma redenção para o impasse da cultura contemporânea.

Nenhum comentário: