Páginas

17.3.15

VAINER, Carlos B. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Carta Maior; Boitempo, 2013.

É a questão urbana, estúpido!, Ermínia Maricato

Nem toda melhoria das condições de vida é acessível com melhores salários ou com melhor distribuição de renda. Boas condições de vida dependem, frequentemente, de políticas públicas urbanas – transporte, moradia, saneamento, educação, saúde, lazer, iluminação pública, coleta de lixo, segurança.

Há uma disputa básica, como um pano de fundo, entre aqueles que querem dela melhores condições de vida e aqueles que visam apenas extrair ganhos.

As cidades brasileiras carregam uma herança pesada. A desigualdade social, uma das maiores da América Latina, e a escravidão vigente até pouco mais de um século atrás são características que se somam a um Estado patrimonialista e à universalização da “política do favor.

A melhoria desses bairros é fonte inesgotável do velho clientelismo político: troca-se por votos a pavimentação de uma rua, a iluminação pública, uma unidade de saúde, uma linha de ônibus etc.

Os principais programas sociais do governo Lula, continuados pelo de Dilma Rousseff foram o Bolsa Família, o Crédito Consignado, o Programa Universidade para Todos (ProUni), que oferece bolsas de estudo em universidades privadas trocadas por impostos, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa Luz para Todos. Garantiu-se também um aumento real do salário mínimo (de cerca 55%, entre 2003 e 2011, conforme o Dieese). Os classificados em “condição de pobreza” diminuíram sua representação de 37,2% para 7,2% nesse mesmo período.

Em 2010 o PIB nacional foi de 7,5% e o da construção civil, 11,7%[6]. Em seis regiões metropolitanas, o desemprego, que atingia 12,8% em 2003, caiu para 5,8% em 2012. A taxa de desemprego da construção civil no período diminuiu de 9,8% para 2,7%[7]. O investimento de capitais privados no mercado residencial cresceu 45 vezes, passando de R$ 1,8 bilhão em 2002 para R$ 79,9 bilhões em 2011[8], e os subsídios governamentais (em escala inédita no país) cresceram de R$ 784.727 milhões para mais de R$ 5,3 bilhões em 2011[9]. O coração da agenda da reforma urbana, a reforma fundiária/imobiliária, foi esquecido.

Em São Paulo o preço dos imóveis sofreu aumento de 153% entre 2009 e 2012. No Rio de Janeiro, o aumento foi de 184%. A terra urbana permaneceu refém dos interesses do capital imobiliário e, para tanto, as leis foram flexibilizadas ou modificadas, diante de urbanistas perplexos.

Os pobres foram expulsos para a periferia da periferia. Novas áreas de proteção ambiental, como a Área de Proteção dos Mananciais em São Paulo, acabam sendo invadidas pelos sem alternativas.

A desoneração dos automóveis somada à ruína do transporte coletivo fez dobrar o número de carros nas cidades.

A velocidade média dos automóveis em São Paulo, medida entre às 17h e 20h em junho de 2012, foi de 7,6 km/h, ou seja, quase igual a da caminhada a pé.

Verdadeiros assaltos aos cofres públicos, os investimentos em obras de viadutos, pontes e túneis, além de ampliação de avenidas, não guardam qualquer ligação com a racionalidade da mobilidade urbana, mas com a expansão do mercado imobiliário, além, obviamente, do financiamento de campanhas.

O primeiro item necessário à política urbana hoje é a reforma política, em especial o financiamento de campanhas eleitorais.



A liberdade da cidade, David Harvey

Se descobrirmos que nossa vida se tornou muito estressante, alienante, simplesmente desconfortável ou sem motivação, então temos o direito de mudar de rumo e buscar refazê-la segundo outra imagem.

A questão do tipo de cidade que desejamos é inseparável da questão do tipo de pessoa que desejamos nos tornar.

Além do mais, vivemos, na maioria, em cidades divididas, fragmentadas e tendentes ao conflito.

A globalização e a guinada em direção ao neoliberalismo enfatizaram, ao invés de diminuir, as desigualdades sociais. O poder de classe foi restaurado às elites ricas.

Os bairros ricos são atendidos por toda sorte de serviços, tais como escolas caras, campos de golfe, quadras de tênis e patrulhamento particular 24 horas por dia, que se emaranham entre ocupações ilegais, onde a água é disponível somente em fontes públicas, nenhum sistema sanitário existe, a eletricidade é privilégio de poucos, as ruas se tornam lama quando chove e o compartilhamento dos espaços domésticos é a norma.

As cidades sempre foram lugares de desenvolvimentos geográficos desiguais (às vezes de um tipo totalmente benevolente e entusiasmante), mas as diferenças agora proliferam e se intensificam de maneiras negativas, até mesmo patológicas, que inevitavelmente semeiam tensão civil.

Tais desenvolvimentos urbanos desiguais traçam o cenário para o conflito social

Por um lado, tais diferenciações podem gerar novas e maravilhosas fusões, como as que vemos nas tradições musicais de Nova Orleans, Joanesburgo ou no East End londrino. Concluímos daí que o direito à diferença é um dos mais preciosos direitos dos citadinos. A cidade sempre foi um lugar de encontro, de diferença e de interação criativa, um lugar onde a desordem tem seus usos e visões, formas culturais e desejos individuais concorrentes se chocam.

Mas a diferença também pode resultar em intolerância e segregações, marginalidade e exclusão, quando não em fervorosos confrontos.

Se for assim, como Marx tão celebremente escreveu, entre direitos iguais quem decide é a força.

Como, em resumo, poderia o direito à cidade ser exercitado pela mudança da vida urbana? A resposta de Lefebvre é simples em essência: por meio da mobilização social e da luta política/social.

Mas, ao contrário – e é aqui que a dialética retorna para nos assombrar –, a cidade nos faz sob circunstâncias urbanas que não escolhemos.

Ao abrir a porta da imaginação humana, Marx, ainda que tenha procurado negá-lo, cria um movimento utópico dentro do qual nossas imaginações podem vagar e pensar em possíveis alternativas de mundos urbanos.

No entanto, o neoliberalismo transformou as regras do jogo político.

A lei e as parcerias público-privadas, feitas sem transparência, substituíram as instituições democráticas; a anarquia do mercado e do empreendedorismo competitivo substituíram as capacidades deliberativas baseadas em solidariedades sociais.

O direito à cidade, como comecei a dizer, não é apenas um direto condicional de acesso àquilo que já existe, mas sim um direito ativo de fazer a cidade diferente, de formá-la mais de acordo com nossas necessidades coletivas (por assim dizer), definir uma maneira alternativa de simplesmente ser humano. Se nosso mundo urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e refeito.

 [...] o direito à cidade é um grito, uma demanda, então é um grito que é ouvido e uma demanda que tem força apenas na medida em que existe um espaço a partir do qual e dentro do qual esse grito e essa demanda são visíveis. No espaço público – nas esquinas ou nos parques, nas ruas durante as revoltas e comícios – as organizações políticas podem representar a si mesmas para uma população maior e, através dessa representação, imprimir alguma força a seus gritos e demandas. Ao reclamar o espaço em público, ao criar espaços públicos, os próprios grupos sociais tornam-se públicos.


O transporte público gratuito, uma utopia real, João Alexandre Peschanski

A criação de um sistema de transporte público gratuito não é viável apenas numa configuração social futura, hipotética – é em princípio funcional ao capitalismo realmente existente [3].

A tarifa zero se justifica, nesses termos econômicos, se o preço total dos impactos sociais positivos for tomado como a base para o pagamento público das tarifas de cada usuário [5].

Drástica diminuição dos custos sociais relacionados à poluição e ao trânsito quando o meio de transporte principal é o automóvel individual.

As montadoras repassam ao cidadão e ao Estado os custos sociais relacionados ao uso de automóveis. Os brasileiros pagam para que cada vez mais pessoas tenham carros individuais.

Para atingir cada vez mais consumidores, as montadoras exigem do governo redução de impostos e mais facilidade no crédito para compradores – querem se livrar ainda mais dos custos sociais dos carros que produzem.

O imposto deveria aumentar sobre as montadoras que lucram com a produção de um bem com alto custo social

Os usuários de transporte público beneficiam toda a sociedade, pois mantêm baixos os custos sociais relacionados ao transporte (poluição, trânsito). Beneficiam até mesmo as pessoas que não usam o transporte público.

Cobrar pelo transporte público se torna uma exploração dos usuários pelos não usuários.

Os gastos do sistema de transporte coletivo deveriam ser partilhados pelos beneficiados, ou seja, divididos entre todos os cidadãos.

A gratuidade funciona como um incentivo aos cidadãos para que usem meios públicos de locomoção, aumentando os benefícios sociais.

As montadoras têm, evidentemente, interesse em manter a sociedade dependente dos carros que fabricam. Para garantir seus lucros, precisam manter essa dependência e investem para pressionar os governos locais e federal.

O real obstáculo para a proposta da tarifa zero diz respeito às relações de poder no capitalismo.


Mídia, rebeldia urbana e crise de representação, Venício A. de Lima

A despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os dardos de sua crítica, poupam outros setores [...]. Tem-se muitas vezes a impressão de que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou do Congresso [...].[2]

A primeira reação foi de condenação pura e simples. As manifestações deveriam ser reprimidas com rigor ainda maior. À medida, no entanto, que o fenômeno se alastrou, a velha mídia alterou radicalmente sua avaliação inicial. Passou então a cobrir em tempo real os acontecimentos, como se fosse apenas uma observadora imparcial, que nada tivesse a ver com os fatos que desencadearam todo o processo. O que começou com veemente condenação transformou-se, da noite para o dia, não só em tentativa de cooptação, mas também de instigar e pautar as manifestações, introduzindo bandeiras aparentemente alheias à motivação original dos manifestantes.

Identificou também uma oportunidade de “desconstruir” as inegáveis conquistas sociais dos últimos anos em relação ao combate à desigualdade, à miséria e à pobreza.

Esse déficit na representação política do Parlamento, acrescido do bloqueio histórico de vozes ao debate público e a consequente corrupção da opinião pública, praticados pelos oligopólios empresariais da velha mídia, talvez nos ajudem a compreender, pelo menos em parte, a explosão das ruas.

Embora consiga dissimular com competência suas reais intenções, a velha mídia não só faz parte como de fato agrava a crise da representação política


Problemas no Paraíso, Slavoj Žižek


Uma situação revolucionária surge quando se torna claro que apenas uma mudança global radical pode resolver os problemas particulares.

Nenhum comentário: