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25.8.15

GORZ, Andre. A ideologia social do automóvel. In: LUDD, Ned (org.) Apocalipse Motorizado. São Paulo: Conrad, 2005.

André Gorz - A Ideologia social do carro

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O maior problema dos carros é o de serem como os castelos ou as casas de veraneio na Riviera Francesa: são bens de luxo inventados para o prazer exclusivo de uma minoria de muito ricos; e nada, em sua concepção ou em sua natureza, se destinava ao povo. Diferentemente do aspirador, dos aparelhos de rádio ou da bicicleta, que mantêm seu valor de uso quando todo mundo os utiliza, o carro, assim como uma casa na Riviera, só interessa e tem vantagens na medida em que a massa não pode utilizá-los. É que, por sua concepção e por sua destinação original, o carro é um bem de luxo. E o luxo essencialmente não se democratiza: se todo mundo acede ao luxo, ninguém pode dele tirar vantagens; ao contrário, todo mundo usa, frustra e desapropria os outros e é frustrado e desapropriado por eles.

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Não havia, até a virada do século, uma velocidade de deslocamento para a elite, e uma outra para o povo. O carro iria mudar isso: ele estendia, pela primeira vez, a diferença de classe à velocidade e ao meio de transporte.

Diferentemente de todos os outros proprietários de meios de locomoção, o automobilista iria ter uma relação de usuário e de consumidor – e não mais de possuidor e de mestre – com o veículo do qual formalmente era o proprietário. Dito de outra forma, esse veículo obrigaria a consumir e a utilizar uma grande quantidade de serviços e de produtos industriais que somente terceiros poderiam lhe fornecer. A autonomia aparente do proprietário de um automóvel escondia sua radical dependência.

A situação com a qual sonha todo capitalista iria se realizar: todos os homens iriam depender, para realizar suas necessidades cotidianas, de uma mercadoria de que uma única indústria deteria o monopólio.

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Havia-se lhes prometido um privilégio de burguês, eles tinham se endividado para ter carros, e eis que percebiam que todo mundo também tinha comprado carros. O que é um privilégio, se todo mundo pode tê-lo? É um mau negócio.

Quando todo mundo pretende andar na velocidade privilegiada dos burgueses, o resultado é que ninguém mais anda;

Quanto mais se façam estradas vicinais, mais carros haverá para nelas trafegar e mais paralisante será a congestão da circulação urbana.

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O americano típico dedica mais de mil e quinhentas horas por ano (ou seja, trinta horas por semana, ou ainda quatro horas por dia, aí compreendidos os domingos) ao seu carro: isso compreende as horas que passa à frente do volante, andando ou parado; as horas de trabalho necessárias para pagá-lo e para pagar a gasolina, os pneus, os pedágios, o seguro, as multas e os impostos (…). A esse americano são necessárias então mil e quinhentas horas para fazer (num ano) 10.000 quilômetros. Seis quilômetros lhe tomam uma hora. Nos países privados da indústria de transportes, as pessoas se deslocam exatamente nessa mesma velocidade andando a pé, com a vantagem suplementar de poderem ir não importa aonde, e não somente por vias asfaltadas.

Para dar lugar ao carro, multiplicaram-se as distâncias: moramos longe do local do trabalho, longe da escola, longe do supermercado – o que vai exigir um segundo carro para que a “dona de casa” possa fazer as compras e levar as crianças à escola. Saídas? Fora de questão. Amigos? Bem, há os vizinhos... O carro, no final das contas, faz perder mais tempo do que economiza, e cria mais distâncias do que pode vencer. É claro que você pode chegar ao seu trabalho fazendo 100 km/h, mas é porque você mora a 50 km do seu trabalho e aceita perder uma meia hora para percorrer os últimos dez quilômetros. Balanço geral: “as pessoas trabalham uma boa parte do dia para pagar os deslocamentos necessários para trabalhar” (Ivan Illich).

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O carro tornou a cidade grande inabitável. Ele a tornou fétida, barulhenta, asfixiante, suja, obstruída; ao ponto em que as pessoas nem desejam mais sair à noite. Então, já que os carros mataram a cidade, precisaremos agora de carros ainda mais rápidos para fugir pelas estradas em direção a subúrbios ainda mais distantes. Circularidade perfeita: deem-nos mais carros para que fujamos das devastações causadas pelos carros.

Para a indústria capitalista, é uma partida ganha: o supérfluo se tornou necessário. Doravante, será inútil tentar persuadir as pessoas a não desejarem carros: a necessidade deles está inscrita nas coisas.

Você está colado na rua (ou na estrada) tão inexoravelmente quanto os trens estão nos seus trilhos. Você não pode, não mais que o viajante ferroviário, parar espontaneamente em algum lugar, e deve, assim como num trem, avançar numa velocidade determinada pelos outros.

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Na verdade, ninguém realmente tem escolha: não se é livre para ter ou não um carro já que o universo suburbano é agenciado em função dele

Num certo número de cidades americanas, o fato de passear a pé durante a noite pelas ruas é mesmo considerado um delito.

Para que as pessoas possam renunciar ao seu carro, não é suficiente oferecer-lhes meios de transporte coletivo mais cômodos: é preciso fazer com que elas simplesmente não necessitem mais de transporte, pois que se sentirão em casa estando em seus bairros, em suas comunidades, em sua cidade, e terão prazer em ir a pé do trabalho ao domicílio – a pé ou, a rigor, de bicicleta.

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Mas o que fazer para chegar a esse ponto? Sobretudo, nunca pensar o problema do transporte isoladamente; sempre ligá-lo ao problema da cidade, da divisão social do trabalho e da compartimentalização que esta introduziu entre as diversas dimensões da existência: um lugar para trabalhar, um lugar para “morar”, um terceiro onde se abastecer, um quarto para se instruir, um quinto para se divertir. O agenciamento do espaço dá continuidade à desintegração do homem começada pela divisão do trabalho na usina. Ele corta o indivíduo em fatias; corta seu tempo, sua vida, em pedaços bem separados para que, em cada um deles, você seja um consumidor passivo sem defesas contra o mercado, para que nunca lhe venha à ideia que o trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades e a vida pessoal possam e devam ser uma única e mesma coisa: a unidade da vida, sustentada pelo tecido social da comunidade.

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