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3.11.15

ARON, Raymond. Karl Marx. In_____. As etapas do pensamento sociológico. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 884 p.

Karl Marx

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Marx foi um autor fecundo, que escreveu muito, e que, como acontece às vezes com os sociólogos, escreveu tanto artigos de jornal como obras de fôlego. Tendo escrito muito, nem sempre disse a mesma coisa sobre os mesmos temas. Com um pouco de engenho e de erudição é sempre possível encontrar, sobre a maioria dos problemas, fórmulas marxistas que não parecem conciliáveis ou que, pelo menos, se prestam a diferentes interpretações.

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O essencial no esforço cientifico de Marx foi demonstrar cientificamente a evolução, a seus olhos inevitável, do regime capitalista.

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Marx era incontestavelmente um sociólogo, mas um sociólogo de tipo determinado, sociólogo-economista, convicto de que não podemos compreender a sociedade moderna sem uma referência ao funcionamento do sistema econômico, nem compreender a evolução do sistema econômico se desprezamos a teoria do funcionamento.

A análise socioeconômica do capitalismo.

Para Marx esses conflitos entre os operários e os empresários ou, para empregar o vocabulário marxista, entre o proletariado e os capitalistas, são o fato mais importante das sociedades modernas, o que revela a natureza essencial dessas sociedades, ao mesmo tempo que permite prever o desenvolvimento histórico.

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O centro do pensamento de Marx é a afirmação do caráter contraditório do regime capitalista, entenderemos imediatamente por que é impossível separar o sociólogo do homem de ação, já que demonstrar o caráter antagônico do regime capitalista leva irresistivelmente a anunciar a autodestruição do capitalismo.

A primeira ideia decisiva de Marx: a história humana se caracteriza pela luta de grupos humanos que chamaremos classes sociais, cuja definição, que por enquanto permanece equívoca, implica uma dupla característica; por um lado, a de comportar o antagonismo dos opressores e dos oprimidos e, por outro lado, de tender a uma polarização em dois blocos, e somente em dois.

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A primeira é a contradição entre as forças e as relações de produção. A burguesia cria incessantemente meios de produção mais poderosos.

O regime capitalista é capaz de produzir cada vez mais. Ora, a despeito desse aumento das riquezas, a miséria continua sendo a sorte da maioria.

No Manifesto Comunista são apresentadas duas formas da contradição característica da sociedade capitalista.

Aparece assim uma segunda forma de contradição, a que existe entre o aumento das riquezas e a miséria crescente da maioria.

O proletariado, que constitui e constituirá cada vez mais a imensa maioria da população, se constituirá em classe, isto é, numa unidade social que aspira à tomada do poder e à transformação das relações sociais.

Todas as revoluções do passado eram feitas por minorias, em beneficio de minorias. A revolução do proletariado será feita pela imensa maioria, em benefício de todos. A revolução proletária marcará assim o fim das classes e do caráter antagônico da sociedade capitalista.

Os capitalistas não podem deixar de transformar a organização social. Empenhados numa concorrência inexpiável, não podem deixar de aumentar os meios de produção, de ampliar ao mesmo tempo o número dos proletários e sua miséria.

Só duas classes têm condições de imprimir sua marca na sociedade. Uma é a classe capitalista e a outra a classe proletária. No dia do conflito decisivo, todos serão obrigados a se alinhar seja com os capitalistas, seja com os proletários.

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Apresenta o poder político como a expressão dos conflitos sociais. O poder político é o meio pelo qual a classe dominante, a classe exploradora, mantém seu domínio e sua exploração.

Nesta linha de raciocínio, a supressão das contradições de classe deve levar logicamente ao desaparecimento da política e do Estado, pois política e Estado são, na aparência, o subproduto ou a expressão dos conflitos sociais.

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1) Primeira ideia e ideia essencial: os homens entram em relações determinadas, necessárias, que são independentes da sua vontade. Em outras palavras, convém seguir o movimento da história analisando a estrutura das sociedades, as forças de produção e as relações de produção.

2) Em toda sociedade podemos distinguir a base econômica, ou infraestrutura, e a superestrutura. A primeira é constituída essencialmente pelas forças e pelas relações de produção; na superestrutura figuram as instituições jurídicas e políticas, bem como os modos de pensar, as ideologias, as filosofias.

3) O motor do movimento histórico é a contradição, em cada momento da história, entre as forças e as relações de produção.

Em outras palavras, a dialética da história é constituída pelo movimento das forças produtivas, que entram em contradição, em certas épocas revolucionárias, com as relações de produção, isto é, tanto as relações de propriedade como a distribuição da renda entre os indivíduos ou grupos da coletividade.

Essa dialética das forças e das relações da produção sugere uma teoria das revoluções. Com efeito, dentro dessa visão histórica, as revoluções não são acidentais, mas sim a expressão de uma necessidade histórica.

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Marx não distingue só a infra e a superestrutura, mas também a realidade social e a consciência: não é a consciência dos homens que determina a realidade, mas, ao contrário, é a realidade social que determina sua consciência.

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Modo de produção asiático: Exploração de toda a sociedade pelo Estado.

"O capital"

A essência do capitalismo é, antes de tudo, a busca do lucro. Na medida em que se baseia na propriedade privada dos instrumentos de produção, o capitalismo está fundamentado também na busca do lucro pelos empresários ou produtores.

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A essência da troca capitalista consiste em passar do dinheiro ao dinheiro passando pela mercadoria, para ter, no fim do processo, mais dinheiro do que no ponto de partida.

O problema principal do capitalismo, segundo Marx, poderia ser assim formulado: qual a origem do lucro? Como é possível um regime em que o motor essencial da atividade é a busca do lucro e em que, em suma, produtores e comerciantes podem lucrar?

Como procuramos saber em que consiste o valor de troca das mercadorias, precisamos encontrar um elemento que seja quantificável, como o próprio valor de troca. E, diz Marx, o único valor quantificável é a quantidade de trabalho que está inserido, integrado, cristalizado em cada uma delas.

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Segunda proposição: o valor do trabalho pode ser medido, como o valor de qualquer mercadoria. O salário pago pelo capitalista ao trabalhador assalariado, como contrapartida da força de trabalho que este último lhe vende, equivale à quantidade de trabalho social necessário para produzir mercadorias indispensáveis a vida do trabalhador e de sua família. O trabalho humano é pago pelo seu valor, de acordo com a lei geral do valor aplicável a todas as mercadorias.

Terceira proposição: o tempo de trabalho necessário para o operário produzir um valor igual ao que recebe sob forma de salario é inferior à duração efetiva do seu trabalho.

O operário produz, por exemplo, em cinco horas um valor igual ao que está contido no seu salário, mas na verdade trabalha dez horas. Portanto, trabalha metade do tempo para si mesmo e a outra metade para o dono da empresa. A mais-valia é a quantidade de valor produzido pelo trabalhador além do tempo de trabalho necessário.

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A parte da jornada de trabalho necessária para produzir o valor cristalizado no salário é o chamado trabalho necessário; o resto é o sobretrabalho.

O valor produzido durante o sobretrabalho é chamado mais-valia. E a taxa de exploração é definida pela relação entre a mais-valia e o capital variável, isto é, o capital que corresponde ao pagamento do salário.

Existem dois procedimentos fundamentais para aumentar a mais-valia à custa dos assalariados, isto é, para elevar a taxa de exploração. Um consiste em prolongar a duração do trabalho; o outro, em reduzir o mais possível o trabalho necessário. Um dos meios de conseguir reduzir a duração do trabalho é aumentar a produtividade, isto é, produzir o valor igual ao do salário num tempo mais curto. Isso explica o mecanismo da tendência pela qual a economia capitalista procura aumentar constantemente a produtividade do trabalho.

Há uma mercadoria que tem esta particularidade de ser paga pelo seu valor, e ao mesmo tempo produzir mais que seu valor, é o trabalho humano.

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Para Marx, o capital constante é a parte do capital das empresas que corresponde seja às máquinas, seja às matérias-primas investidas na produção. No esquematismo do livro I, o capital constante se transfere para o valor dos produtos sem criar mais-valia. A mais-valia provém toda do capital variável, correspondente ao pagamento dos salários. A composição orgânica do capital é a relação entre o capital variável e o capital constante. A taxa de exploração é a relação entre a mais-valia e o capital variável.

Ora, salta aos olhos que não é o que acontece.

Se a teoria da exploração é válida, por que razão as empresas e os setores da economia que aumentam o capital constante, em relação ao capital variável, conseguem maiores lucros?

A resposta de Marx é a seguinte: a taxa de lucro é calculada não com relação ao capital variável, como a taxa de exploração, mas com relação ao conjunto do capital, isto é, a soma do capital constante e do variável.

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Portanto, a taxa de lucro e efetivamente proporcional ao conjunto do capital, e não ao capital variável, pois de outra forma o regime capitalista não poderia funcionar.

Mas por que essa aparência do modo do lucro é diferente da realidade essencial do modo da mais-valia?

A resposta de Marx é a seguinte: o capitalismo não poderia funcionar se a taxa de lucro fosse proporcional à mais-valia, e não ao conjunto do capital. Há assim uma taxa de lucro média em cada economia.

Se houvesse um hiato muito grande entre as taxas de lucro dos vários setores, o sistema não funcionaria. Se houvesse num determinado setor taxa de lucro de 30 a 40% e num outro uma taxa de 3 a 4%, não se encontraria capital para investir nos setores em que a taxa de lucro fosse baixa.

Lei da tendência para a baixa da taxa de lucro.

O lucro médio é proporcional ao conjunto do capital, isto é, ao total do capital constante e do capital variável. A mais-valia, porém, deriva apenas do capital variável, isto é, do trabalho dos homens. Ora, a composição orgânica do capital se transforma com a evolução capitalista e a mecanização da produção, e a parte do capital variável com relação ao capital total tende a diminuir. Marx conclui daí que a taxa de lucro tende a baixar à medida que a composição orgânica do capital se modifica, reduzindo a parte do capital variável no capital total.

O mecanismo da concorrência de uma economia baseada no lucro tende à acumulação do capital, à mecanização da produção e à redução da parte do capital variável no capital total.

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Quais são as proposições que demonstram a autodestruição do regime?

São as afirmações relacionadas com a proletarização e a pauperização. O processo de proletarização significa que, à medida que se desenvolve o regime capitalista, as camadas intermediárias, entre capitalistas e proletários, serão desgastadas, corroídas, e um número crescente dos membros dessas camadas serão absorvidos pelo proletariado.

Nessa hipótese, o mecanismo de autodestruição do capitalismo seria sociológico, passando pelo comportamento dos grupos sociais.

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O que impede a elevação dos salários é o excedente permanente de mão-de-obra não empregada.

A permanente mecanização da produção tende a liberar uma parte dos operários empregados.

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Os equívocos da filosofia marxista

O centro do pensamento marxista é uma interpretação sociológica e histórica do regime capitalista, condenado, em função das suas contradições, a evoluir para a revolução e para um regime não-antagônico.

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A sociedade civil impede os indivíduos de realizar sua vocação de universalidade.

O trabalhador, que vende sua força de trabalho no mercado em troca de um salário, não é como o cidadão que, a cada quatro ou cinco anos, elege seus representantes e, direta ou indiretamente, seus governantes. Para que se realizasse a democracia real, seria necessário que as liberdades limitadas à ordem política nas sociedades atuais fossem transpostas para o campo da existência concreta, econômica, dos homens.

Contudo, para que os indivíduos no trabalho pudessem participar da universalidade, como os cidadãos com seu voto, para que se pudesse realizar a democracia real, seria necessário suprimir a propriedade privada dos meios de produção, que põe alguns indivíduos a serviço de outros, provoca a exploração dos trabalhadores pelos empresários e interdita a estes últimos o trabalho direto para a coletividade, já que, no sistema capitalista, eles trabalham visando ao lucro.

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Em linguagem comum, a ideia de Marx é a seguinte: o que significa o direito de votar a cada quatro ou cinco anos para os indivíduos que não têm outro meio de subsistência a não ser os salários que recebem dos patrões, em condições que estes estabelecem?

O segundo conceito em torno do qual gira o pensamento de juventude de Marx é o do homem total, provavelmente ainda mais equívoco do que o do homem universalizado. O homem total é o que não é mutilado pela divisão do trabalho. Para Marx, e a maioria dos observadores, o homem da sociedade industrial moderna é, com efeito, um homem especializado. Adquiriu uma formação especifica, para exercer uma profissão particular. Permanece encerrado a maior parte de sua vida nessa atividade setorial, deixando de utilizar muitas aptidões e faculdades que poderiam se desenvolver.

Nessa linha, o homem total seria aquele que não fosse especializado. Alguns textos de Marx sugerem uma formação politécnica, em que todos os indivíduos fossem preparados para o maior número possível de profissões. Com tal formação, não estariam condenados a fazer a mesma coisa, de manhã à noite.

O homem é concebido essencialmente como um ser que trabalha. Se trabalha em condições desumanas, é desumanizado, porque deixa de cumprir a atividade que constitui sua humanidade.

Marx usa três termos diferentes que são traduzidos muitas vezes pela mesma palavra - alienação -, embora as palavras alemãs não tenham exatamente o mesmo sentido. O termo que corresponde aproximadamente à palavra alienação etimologicamente significa: tornar-se estranho a si mesmo. A ideia é que, em certas circunstâncias, ou em certas sociedades, as condições impostas ao homem são tais que este se torna um estranho para si mesmo, isto é, não se reconhece mais na sua atividade e nas suas obras.

Há duas modalidades de alienação econômica que correspondem aproximadamente a duas criticas de Marx ao sistema capitalista. A primeira alienação é imputável à propriedade privada dos meios de produção; a segunda, à anarquia do mercado.

A alienação imputável à propriedade privada dos meios de produção se manifesta no fato de que o trabalho, atividade essencialmente humana, que define a humanidade do homem, perde suas características humanas, já que passa a ser, para os assalariados, nada mais do que um meio de existência. Em vez de o trabalho ser a expressão do próprio homem, o trabalho se vê degradado em instrumento, em meio de viver.

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Os empresários também são alienados, pois a finalidade das mercadorias de que dispõem não é atender a necessidades realmente sentidas pelos outros, mas são levadas ao mercado para obter lucro. O empresário se torna escravo de um mercado imprevisível, sujeito aos azares da concorrência.

Para ele a análise da economia capitalista era a análise da alienação dos indivíduos e das coletividades, que perdiam o controle da sua própria existência num sistema sujeito a leis autônomas.

A crítica da economia capitalista era também a critica filosófica e moral da situação imposta ao homem pelo capitalismo.

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É difícil imputar exclusivamente à propriedade privada dos meios de produção o fato de todos os homens não realizarem todas as suas aptidões. Em outras palavras, parece haver uma desproporção extrema entre a alienação humana atribuível à propriedade privada dos meios de produção e a realização do homem total que deve resultar da revolução.

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Se todo sujeito histórico pensa a história em função da sua situação, por que a interpretação dos marxistas ou do proletariado é verdadeira? Por que é total?

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Os equívocos da sociologia marxista

O emprego crítico das categorias marxistas não implica uma interpretação dogmática do curso da história.

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Se, no regime capitalista, a luta de classes se atenuar com o desenvolvimento das forças de produção, ou ainda, se houver propriedade coletiva numa economia pouco desenvolvida, o paralelismo entre esses movimentos, que é indispensável para a filosofia dogmática da história, é rompido.

A meu ver, o pensamento de Marx não comporta dúvida. Acreditava que um regime histórico era definido por certas características principais, o estado das forças produtivas, a forma da propriedade e as relaçes dos trabalhadores entre si.

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A visão coerente de Marx é a de um desenvolvimento das forças produtivas que torna cada vez mais difícil manter as relações de produção capitalista e o funcionamento dos mecanismos desse regime, tornando a luta de classes cada vez mais impiedosa. Na verdade, porém, o desenvolvimento das forças produtivas se fez, em alguns casos, com a propriedade privada, em outros com a propriedade pública. A revolução não ocorreu onde as forças produtivas tinham atingido o maior desenvolvimento. Os fatos a partir dos quais Marx encontra a totalidade social e histórica foram dissociados pela história.

Na infraestrutura, definida como força de produção, já entram elementos que deveriam pertencer à superestrutura.

De modo geral, parece que devemos chamar de infraestrutura a economia, em particular as forças de produção, isto é, o conjunto do equipamento técnico de uma sociedade, e também a organização do trabalho. Mas o equipamento técnico de uma civilização é inseparável dos conhecimentos científicos. Ora, estes parecem pertencer ao domínio das ideias ou do saber, e estes últimos deveriam estar ligados, ao que parece, à superestrutura, pelo menos na medida em que o saber cientifico está, em muitas sociedades, intimamente ligado aos modos de pensar e a filosofia.

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Se considerarmos que essas grandes sociedades são a própria essência do capitalismo, poderemos mostrar com igual facilidade que o desenvolvimento das forças produtivas não elimina absolutamente o direito de propriedade, e que a contradição teórica entre forças e relações de produção não existe. O desenvolvimento das forças de produção exige o aparecimento de novas formas de relações de produção

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Para que uma classe exista, é preciso que haja tomada de consciência da unidade e sentimento de separação das outras classes sociais, quem sabe até mesmo sentimento de hostilidade em relação às outras classes sociais. No caso limite, os indivíduos separados só formam uma classe na medida em que precisam desenvolver uma luta comum contra outra classe.

Marx assemelha a expansão da burguesia à expansão do proletariado.

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Ora, esta aproximação, a meu ver, é um erro.

A burguesia, seja comerciante, seja industrial, era uma minoria privilegiada, que exercia funções socialmente indispensáveis. Opunha-se à classe dirigente feudal como uma aristocracia econômica se opõe a uma aristocracia militar.

Entretanto, na sociedade capitalista, o proletariado não é uma minoria privilegiada mas, ao contrário, a grande massa dos trabalhadores não-privilegiados. Não cria novas forças ou relações de produção dentro da sociedade capitalista; os operários são os a gentes de execução de um sistema de produção dirigido pelos capitalistas

Por isso, a comparação entre a expansão do proletariado e a expansão da burguesia é sociologicamente falsa.

No caso da burguesia, são os burgueses os privilegiados, os que dirigem o comércio e a indústria, os que governam. Quando o proletariado faz sua revolução, são os homens que dizem representá-lo que dirigem as empresas comerciais e industriais, e que exercem o poder.

A burguesia é uma minoria privilegiada, que passou da situação socialmente dominante ao exercício político do poder; o proletariado é a grande massa não privilegiada que não pode tornar-se, enquanto tal, uma minoria privilegiada e dominante.

Afirmo apenas, porque acredito tratar-se de fatos, que a ascensão do proletariado não pode ser assemelhada, a não ser pela mitologia, à ascensão da burguesia, e que aí está o erro central de toda a visão marxista da história, que salta aos olhos e cujas consequências têm sido imensas.

Marx quis definir de modo unívoco, pela classe que exerce o poder, um regime econômico, social e político. Ora, essa definição do regime é insuficiente, porque implica, aparentemente, uma redução da política à economia, ou do Estado à relação entre os grupos sociais.

Sociologia e economia

Tal como o descreve Marx, o regime capitalista só pode funcionar com a condição de que exista um grupo de pessoas dispondo de capital e em condições de comprar a força de trabalho daqueles cuja única coisa que possuem é essa força de trabalho. Como se constituiu historicamente esse grupo de homens?

A violência, a força, a astúcia, o furto e outros procedimentos clássicos da história política explicam, sem dificuldade, a formação de um grupo de capitalistas.

A análise do funcionamento do capitalismo supõe a existência, no ponto de partida, de fenômenos extra econômicos, que criem condições nas quais o regime possa funcionar.

Há uma dificuldade da mesma natureza que surge no ponto de chegada. Não há, em O Capital, nenhuma demonstração conclusiva sobre o momento em que o capitalismo deixará de funcionar.

Para que a autodestruição do capitalismo fosse economicamente demonstrada, seria necessário que o economista pudesse dizer: o capitalismo não pode funcionar com uma taxa de lucro inferior a determinada porcentagem. Ou então: a partir de determinado ponto, a distribuição da renda é tal que o regime se torna incapaz de absorver sua própria produção. Mas, de fato, nenhuma dessas demonstrações pode ser encontrada em O Capital.

Assim, somos obrigados a introduzir no princípio e no fim do processo de evolução do regime capitalista um fator externo à economia do capitalismo, e que é de natureza politica.

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As relações entre a analise econômica e a analise sociológica levantam o problema das relações entre regimes políticos e regimes econômicos. A meu ver, é nesse ponto que a sociologia de Marx é mais vulnerável à critica.

O Estado é considerado essencialmente como instrumento da dominação de uma classe. Em consequência, um regime político é definido pela classe que exerce o poder.

Em oposição ao regime econômico-social feito de classes antagônicas e baseado na dominação de uma classe sobre as outras, Marx concebe um regime econômico-social em que não haja mais dominação de classe. Por isso, por definição, o Estado desaparecerá, pois ele só existe na medida em que uma classe necessita dele para explorar as outras.

A ditadura do proletariado é o fortalecimento supremo do Estado, antes do momento crucial do seu desaparecimento.

Essa concepção da política e do desaparecimento do Estado numa sociedade não-antagônica me parece, sem a menor duvida, a concepção sociológica mais facilmente refutável de toda a obra de Karl Marx.

Ninguém nega que em toda sociedade, e em particular numa sociedade moderna, haja funções comuns de administração e de autoridade que precisam ser exercidas.

Se chamarmos de Estado o conjunto das funções administrativas e dirigentes da coletividade, não é admissível que o Estado pereça em nenhuma sociedade industrial

O desaparecimento do Estado não pode ocorrer, portanto, a não ser num sentido simbólico. O que desaparece é o caráter de classe do Estado considerado.

Pode-se, de fato, pensar que, a partir do momento em que desaparece a rivalidade das classes, as funções administrativas e de direção, em vez de expressarem a intenção egoísta de um grupo particular, tornam-se a expressão de toda a sociedade. Nesse sentido, pode-se conceber o desaparecimento do caráter de classe, de dominação e de exploração do próprio Estado.

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A fórmula "o proletariado no poder" é apenas uma formula simbólica para dizer: no poder o partido, ou o grupo que representa a massa popular.

Na sociedade em que deixou de haver propriedade privada dos meios de produção, por definição, não há mais antagonismo ligado à propriedade; há, porém, homens que exercem o poder em nome da massa popular.

Numa sociedade em que o Estado, por meio de decisões econômicas, determina amplamente a condição de todas as pessoas, pode haver evidentemente antagonismos entre grupos.

Não se pode deduzir a certeza da ausência de antagonismos do simples fato da inexistência da propriedade privada dos meios de produção, e do fato de que a condição de todas as pessoas depende do Estado. Se as decisões do Estado são tomadas por indivíduos, ou por uma minoria, essas decisões podem corresponder aos interesses desses indivíduos ou dessas minorias.

Uma sociedade planificada pode ser governada, indubitavelmente, de modo equitativo; contudo, não ha uma garantia, a priori, de que os dirigentes da planificação tomarão decisões que correspondam aos interesses de todos.

A garantia do desaparecimento dos antagonismos implicaria que as rivalidades entre os grupos se originassem exclusivamente na propriedade privada dos meios de produção.

Não há razão para que todos os interesses dos membros de uma coletividade passem a ser harmônicas no momento em que os meios de produção deixam de ser passiveis de apropriação individual.

Finalmente, além dessas observações, há um problema fundamental, o da redução da política enquanto tal à economia.

Qualquer que seja o regime econômico e social, o problema político persistirá, porque ele consiste em determinar quem governa, como são recrutados os governantes, como o poder é exercido, ou qual a relação de consentimento ou de revolta entre governantes e governados. A ordem política é tão essencial e autônoma quanto a ordem econômica. As duas ordens estão em relações recíprocas.

O mito do enfraquecimento do Estado é o mito de que o Estado só existe para produzir e distribuir os recursos e que, resolvido o problema da produção e da distribuição dos recursos, não será mais necessário.

No regime capitalista, não são os monopolistas que, pessoalmente, exercem o poder; no regime socialista, não é o proletariado, como um grupo, que exerce o poder. Nos dois casos trata-se de determinar quais são as pessoas que vão exercer as funções políticas, como recrutá-las, de que forma devem exercer a autoridade, qual é a relação entre os governantes e os governados.

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Marx entende por ideologia a falsa consciência, ou falsa representação, que uma classe social tem a respeito da sua própria situação, e da sociedade em conjunto. Em larga medida considera as teorias dos economistas burgueses como uma ideologia de classe. Não que atribua aos economistas burgueses a intenção de enganar seus leitores, ou de se iludirem com uma interpretação mentirosa da realidade. Tende a acreditar, porém, que uma classe só pode ver o mundo em função da sua própria situação.

Mas essa concepção da ideologia traz duas dificuldades. Se uma classe tem, devido a sua situação, uma falsa ideia do mundo, por que um indivíduo consegue se livrar dessas ilusões, e dessa falsa consciência? Por outro lado, se todas as classes têm uma maneira de pensar parcial, onde está a verdade? Como pode uma ideologia ser melhor do que outra, se toda ideologia é inseparável da classe que a adota?

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Conclusão

A planificação socialista sem a democracia não é o socialismo.

Seria necessário, aliás, procurar saber qual o papel desempenhado pela ideologia marxista na construção do socialismo soviético. Está claro que essa sociedade não nasceu do cérebro de Marx e que em larga medida ela é o resultado das circunstâncias.

A forma mais aperfeiçoada é provavelmente a da sociedade sueca, com sua mistura de instituições públicas e privadas, com uma redução da desigualdade de rendas e a eliminação da maior parte dos fenômenos sociais que causavam escândalo. A planificação parcial e a propriedade mista dos meios de produção se combinam com as instituições democráticas do Ocidente, isto é, com a pluralidade partidária, eleições livres, livre discussão das ideias.

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A partir do momento em que somos obrigados a dizer que certos fenômenos que Marx criticou não são imputáveis ao capitalismo, mas sim à sociedade industrial ou à fase de crescimento que ele pôde observar, entramos num mecanismo de pensamento de que Marx era perfeitamente capaz (porque era um grande homem), mas que, de fato, foi estranho a Marx.

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