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19.9.16

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. 747 p.

Espaço físico e espaço social

Como o espaço físico é definido pela exterioridade mútua das partes, o espaço social é definido pela exclusão mútua (ou a distinção) das posições que o constituem, isto é, como estrutura de justaposição de posições sociais.

Não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais, sob uma forma (mais ou menos) deformada e, sobretudo, dissimulada pelo efeito de naturalização que a inscrição durável das realidades sociais no mundo natural acarreta: diferenças produzidas pela lógica histórica podem, assim, parecer surgidas da natureza das coisas.

“Space consumming" (o consumo mais ou menos ostentatório do espaço é uma das formas por excelência de ostentação do poder). Uma parte da inércia das estruturas do espaço social resulta do fato de que elas estão inscritas no espaço físico e que não poderia ser modificadas senão ao preço de um trabalho de transplantação, de uma mudança das coisas e de um desenraizamento ou de uma deportação de pessoas, as quais suporiam transformações sociais extremamente difíceis e custosas.

O espaço social reificado (isto é, fisicamente realizado ou objetivado) se apresenta, assim, como a distribuição no espaço físico de diferentes espécies de bens ou de serviços e também de agentes individuais e de grupos fisicamente localizados (enquanto corpos ligados a um lugar permanente) e dotados de oportunidades de apropriação desses bens e desses serviços mais ou menos importantes (em função de seu capital e também da distância física desses bens, que depende também de seu capital). É na relação entre a distribuição dos agentes e a distribuição dos bens no espaço que se define o valor das diferentes regiões do espaço social reificado.

A capital é, sem jogo de palavras, ao menos no caso da França, o lugar do capital, isto é, o lugar do espaço físico onde se encontram concentrados os pólos positivos de todos os campos e a maior parte dos agentes que ocupam essas posições dominantes: ela não pode, portanto, ser adequadamente pensada senão em relação à província (e ao "provincial") que nada mais é que a privação (totalmente relativa) da capital e do capital.

A incorporação insensível das estruturas da ordem social realiza-se, sem dúvida, para uma parte importante, através da experiência prolongada e indefinidamente repetida das distâncias espaciais nas quais se afirmam distâncias sociais, e também, mais concretamente, através dos deslocamentos e dos movimentos do corpo que essas estruturas sociais convertidas em estruturas espaciais e assim naturalizadas organizam e qualificam socialmente como ascensão ou declínio ("subir a Paris"), entrada (inclusão, cooptação, adoção) ou saída (exclusão, expulsão, excomunhão), aproximação ou distanciamento em relação a um lugar central e valorizado.

O espaço é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce, e, sem dúvida, sob a forma mais sutil, a da violência simbólica como violência desapercebida.

As lutas pela apropriação do espaço

Os ganhos do espaço podem tomar a forma de ganhos de localização, eles mesmos susceptíveis de ser analisados em duas classes: as rendas (ditas de situação) que são associadas ao fato de estarem situadas perto de agentes e de bens raros e cobiçados (como os equipamentos educacionais, culturais ou de saúde); os ganhos de posição ou de classe (como os que são assegurados por um endereço prestigioso), caso particular dos ganhos simbólicos de distinção que estão ligados à posse monopolística de uma propriedade distintiva.

A capacidade de dominar o espaço, sobretudo apropriando-se (material ou simbolicamente) de bens raros (públicos ou privados) que se encontram distribuídos, depende do capital que se possui. O capital permite manter à distância as pessoas e as coisas indesejáveis ao mesmo tempo em que aproximar-se de pessoas e coisas desejáveis (por causa, entre outras coisas, de sua riqueza em capital), minimizando, assim, o gasto necessário (principalmente em tempo) para apropriar-se deles: a proximidade no espaço físico permite que a proximidade no espaço social produza todos os seus efeitos facilitando ou favorecendo a acumulação de capital social e, mais precisamente, permitindo aproveitar continuamente encontros ao mesmo tempo casuais e previsíveis que garante a frequência a lugares bem frequentados.

Inversamente, os que não possuem capital são mantidos à distância, seja física, seja simbolicamente, dos bens socialmente mais raros e condenados a estar ao lado das pessoas ou dos bens mais indesejáveis e menos raros. A falta de capital intensifica a experiência da finitude: ela prende a um lugar.

As oportunidades médias de apropriação dos diferentes bens e serviços materiais ou culturais, associados a um determinado, especificam-se pelos diferentes ocupantes desse habitat segundo as capacidades de apropriação (materiais - dinheiro, meios de transporte particulares- e culturais) que cada um detém como propriedade. Pode-se ocupar fisicamente um habitat sem habitá-lo propriamente falando se não se dispõem dos meios tacitamente exigidos, a começar por um certo hábito.

Sob pena de se sentirem deslocados, os que penetram em um espaço devem cumprir as condições que ele exige tacitamente de seus ocupantes.

Não basta entrar em Beaubourg para se apropriar do museu de arte moderna.

O bairro chique, como um clube baseado na exclusão ativa de pessoas indesejáveis, consagra simbolicamente cada um de seus habitantes, permitindo-lhe participar do capital acumulado pelo conjunto dos residentes: ao contrário, o bairro estigmatizado degrada simbolicamente os que o habitam, e que, em troca, o degradam simbolicamente, porquanto, estando privados de todos os trunfos necessários para participar dos diferentes jogos sociais, eles não têm em comum senão sua comum excomunhão.

A reunião num mesmo lugar de uma população homogênea na despossessão tem também como efeito redobrar a despossessão, principalmente em matéria de cultura e de prática cultural.

A demissão do Estado

A vontade, plenamente louvável, de ir ver as coisas pessoalmente e de perto, leva, por vezes, a procurar os princípios explicativos das realidades observadas exatamente no lugar onde eles não se encontram (pelo menos, na sua totalidade), isto é, no próprio local da observação: assim, é certo que a verdade do que acontece nos "subúrbios difíceis" não reside nesses lugares.

A nobreza do Estado e o liberalismo

É impossível compreender o estado das coisas - em matéria de habitação, assim como em muitos outros setores - sem levar em consideração a conversão coletiva à visão neoliberal que, iniciada nos anos 70, culminou, em meados dos anos 80, com a adesão dos dirigentes socialistas.

Foi acompanhada pela demolição da ideia de serviço público: transformando o liberalismo econômico na condição necessária e suficiente da liberdade política, o intervencionismo do Estado é assimilado ao "totalitarismo"; identifica-se a "modernização" com a transferência para o privado dos serviços públicos mais rentáveis e com a liquidação ou submissão do pessoal subalterno dos serviços públicos, considerado como responsável por toda a ineficiência.

Mão direita e mão esquerda do Estado

A ajuda direta à pessoa toma o lugar das antigas formas de melhoria dos serviços públicos, sendo que já foi mostrado que estas têm consequências completamente diferentes: em perfeita conformidade com a visão liberal, a ajuda direta "reduz a solidariedade a uma simples alocação financeira" e visa somente permitir o consumo (ou incitar a um consumo maior), sem procurar orientar ou estruturar tal consumo.

Passamos, assim, de uma política de Estado que visa agir sobre as próprias estruturas da distribuição para uma política que visa simplesmente corrigir os efeitos da distribuição desigual dos recursos de capital econômico e cultural, isto é, para uma caridade de Estado destinada, como nos bons velhos tempos da filantropia religiosa, aos "pobres merecedores" (deserving poors).

Com o enfraquecimento do sindicalismo e das instâncias mobilizadoras, as novas formas que a ação do Estado reveste contribuem para a transformação do povo (potencialmente) mobilizado em um agregado heterogêneo de pobres atomizados, "excluídos".

A escola dos subproletários

O sentimento de estarem acorrentados pela falta de dinheiro e de meios de transporte a um lugar degradante ("apodrecido") e votados à degradação (e às degradações) que pesa sobre eles como maldição ou, muito simplesmente, um estigma, que impede o acesso ao trabalho, lazer, bens de consumo, etc.; e, mais profundamente, a experiência inexoravelmente repetida do fracasso, antes de tudo na escola, e depois no mercado do trabalho que impede ou desencoraja qualquer antecipação razoável do futuro.

Refazer a história

Se me pareceu necessário evocar uma das séries causais que conduzem dos lugares mais centrais do Estado até às regiões mais deserdadas do mundo social, colocando a ênfase, ao mesmo tempo, na dimensão propriamente política dos processos - sem dúvida, infinitamente mais complexos - que levaram a um estado de coisas nunca pensado ou desejado por quem quer que fosse, não é para me sacrificar à lógica da denúncia e da acusação, mas procurar abrir possibilidades para uma ação racional com o objetivo de desfazer ou refazer o que a história fez.

Não é inútil mostrar o elo entre uma política neoliberal que visa arrancar a pequena burguesia ao habitat coletivo - e, por esse meio, ao "coletivismo", e ligá-la à propriedade privada de sua casa ou de seu apartamento em condomínio e, ao mesmo tempo, à ordem estabelecida - e a segregação espacial, favorecida e reforçada pela retirada do Estado.

Com a irrupção no campo político de um partido que, como o Front National, baseou toda a sua estratégia na exploração da xenofobia e racismo, qualquer debate político passou a organizar-se, mais ou menos diretamente, em torno do problema da imigração.


De fato, é com base na pretensão ao monopólio do acesso às vantagens econômicas e sociais associadas à cidadania que os dominados nacionais podem se sentir solidários com os dominadores nacionais contra os "imigrantes".

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