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13.4.17

MARIANO, Ricardo. Expansão e ativismo político de grupos evangélicos conservadores: secularização e pluralismo em debate. Civitas - Revista de Ciências Sociais, [S.l.], v. 16, n. 4, p. 708-726, dez. 2016.

Dossel sagrado, pluralismo, secularização e privatização


Para Berger (1985, p. 147), “durante a maior parte da história humana, os estabelecimentos religiosos existiram como monopólios na sociedade”. Na Europa medieval, o catolicismo formava um dossel sagrado que englobava e integrava a sociedade, dominava homogeneamente as consciências individuais e impunha a todos os seus ditames morais.

A religião exercia, então, função nomizadora, protegendo os indivíduos da anomia, do caos ou de experiências marginais, noções caras à fenomenologia. As funções cognitiva, moral, integradora e legitimadora da religião monopólica, portanto, constituem categorias de análise centrais, a partir das quais o autor examina, compara e avalia as transformações religiosas na modernidade.

Na esteira de Durkheim, Berger considera que “a mais importante função da sociedade é a nomização”, que a ordem social é a mais básica das necessidades humanas e que a anomia – situação em que o diálogo que sustenta e legitima o mundo esmorece, o faz vacilar e desorienta o indivíduo – constitui o maior perigo (ibid., p. 34-35).

Concebe também a religião como o “instrumento mais amplo e efetivo de legitimação da sociedade e de suas instituições” (ibid., p. 45).

Quanto à secularização, Berger (1985, p. 118) a define como o “processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”.

No plano estrutural, à medida que as sociedades se diferenciaram, várias instituições se separaram e se emanciparam da religião, sendo que a área econômica foi o “palco original da secularização”, seguida pelo estado (ibid., p. 141). A emancipação estatal dos poderes hierocráticos teria, ao mesmo tempo, posto fim ao monopólio religioso e tornado o Estado “guardião imparcial da ordem.

A implementação dessa política liberal propiciou a liberdade e a tolerância religiosas e a emergência do pluralismo religioso. Resultado: modernização, secularização e pluralismo se expandem pelo mundo por meio de sua ocidentalização (ibid., p. 121).

A Reforma Protestante, ao cindir o cristianismo em distintas organizações na Europa Ocidental, multiplicou o “número de estruturas de plausibilidade concorrentes”

O pluralismo gerou “crise de credibilidade” e “amplo colapso da plausibilidade” das definições religiosas (ibid., p. 139). Assim, teve efeito cognitivo corrosivo.

A privatização da religião também se deu com sua perda de espaço e relevância na esfera pública, sendo deslocada para outro “lugar institucional”: a esfera da vida privada, onde sobreviveria atendendo a necessidades morais e terapêuticas (ibid., p. 145, 158).

A religião deixou, então, de ser um dever ou uma herança familiar tradicional partilhada por todos (ibid., p. 149). Adesão e pertença religiosas tornaram-se uma questão de livre escolha individual.

Suprimido o caráter compulsório da adesão religiosa, o pluralismo introduziu “a dinâmica da preferência do consumidor na esfera religiosa” e sujeitou os conteúdos religiosos “à ‘moda'” (ibid., p. 156, 162).

Em suma: Berger considera que, fragmentada em múltiplas estruturas de plausibilidade, a religião (no plural) perdeu a capacidade de impor sua moralidade ao conjunto da sociedade.

Críticas à teoria da secularização de Berger


Em Social theory and religion, James Beckford (2003) critica a tese de Berger sobre o monopólio e o pluralismo religioso, criticando a omissão de todo o poder e violência empregados, incluindo perseguição e extermínio, para manter o monopólio da verdade religiosa (ibid., p. 83).

No plano cognitivo, Beckford questiona por que razão, afinal, a remoção do caráter compulsório do monopólio e da verdade religiosa e a percepção de diversidade religiosa deveriam levar a uma crise de credibilidade da religião (ibid., p. 84). Avalia que a mera existência de uma variedade de expressões religiosas e de noções de verdade não debilita a fé religiosa em si.

Em Public religions in the modern world, Casanova (1994) rebate a teoria da privatização do religioso, ressaltando a participação política de grupos religiosos na Espanha, na Polônia, no Brasil e nos Estados Unidos na segunda metade do século passado.

A seu ver, a diferenciação funcional entre as esferas da vida social (estatal, econômica, científica, educacional, estética, religiosa etc.) não constitui barreira intransponível para a participação religiosa na arena pública (ibid.). Até porque o lobby religioso costuma dispor de liberdade para a atuação pública nos regimes democráticos.

A partir dos anos 1980, Stark e Bainbridge (2008) e seus discípulos se tornaram os principais adversários da teoria da secularização de Berger, defendendo que pluralismo e concorrência contribuem para ampliar os níveis de compromisso e de participação religiosos da população.

Para eles, “a secularização produz uma era de reavivamento religioso e experimentação” (2008, p. 393).

Organizações religiosas que se secularizaram e cujas lideranças se elitizaram, abandonaram a magia: tendem a perder poder e adeptos e dar “às seitas um novo mercado para explorar” (ibid., p. 389).

Mea culpa e revisão teórica de Berger


Em 1999, Berger publicou artigo intitulado A dessecularização do mundo: uma visão global.

Renegou a tese de que a modernidade leva necessariamente a um declínio da religião na sociedade e na mentalidade ou, nos termos de Grace Davie (2007, p. 48), de que haja uma “necessária incompatibilidade entre religião per se e modernidade”.

Berger observa que os grupos religiosos que mais se dedicaram a se adaptar à secularização declinaram, enquanto que grupos conservadores, fundamentalistas, ortodoxos, tradicionalistas e saturados de “sobrenaturalismo reacionário” cresceram por toda a parte, o que, a seu ver, falsifica a “ideia de que modernização e secularização são fenômenos aparentados” (ibid., p. 11-13).

Liderada por pentecostais e islâmicos, a ressurgência religiosa encerra “feição fortemente popular”, de “protesto e resistência contra uma elite secular” e se mostra atraente por prometer certezas num contexto em que a modernidade as solapa, gerando desconforto intolerável para muitos (ibid., p. 17).

Teoria da identidade subcultural da persistência e da força religiosas



Já em American evangelicalism: tmbattled and thriving, Christian Smith (1998, p. 89) opõe-se à ideia de que o pluralismo cultural, a diferenciação social e institucional, a diversidade religiosa e a modernização fragilizam a religião.

Ao examinar a expansão dos evangelicals norte-americanos e a relação que estabelecem com a cultura secular, defende que uma religião conservadora (nos planos moral e teológico) pode prosperar numa sociedade moderna, pluralista e dotada de poderosos grupos, ideologias e forças seculares.

Em vez de acarretar crises de plausibilidade, o pluralismo tende a beneficiar grupos religiosos que se dispõem a confrontar a diversidade, a competir avidamente com outros grupos religiosos e seculares e, em função disso, a construir uma identidade subcultural relacional, distintiva e combativa. Identidade a partir da qual procuram assegurar a coesão, o compromisso e o engajamento de seus membros, visibilizar suas causas e enfrentar o que compreendem, genericamente, como decadência e afronta moral e ameaças à sua religião, à sua liberdade e a seus valores.

Nessa perspectiva, o êxito de um grupo religioso, numa sociedade culturalmente pluralista, depende de sua capacidade de prover identidade coletiva distintiva para orientar a conduta moral, de conferir sentido à ação e à existência, de oferecer certezas e verdades em meio a um cenário de incerteza e risco, de formar sólido sentimento coletivo de pertença e fortes laços de lealdade e de assegurar o engajamento militante de seus adeptos em atividades sociais, religiosas e políticas em torno de determinadas causas comuns (ibid., p. 120-153). Por meio disso, constroem distinções, fronteiras e tensões em relação a grupos, moralidades e valores externos.

Os evangelicals, para Smith, diferem dos fundamentalistas protestantes norte-americanos porque, em vez de optarem pelo isolamento ou pela separação radical do mundo para assegurar a salvação e defender-se da mundanidade, procuram influenciar e intervir diretamente nas diferentes esferas da vida social e na arena pública, a fim de transformar a sociedade mediante suas cruzadas morais e seu engajamento religioso e político (ibid., p. 63-66).

Para tanto, identificam agentes e dispositivos seculares que não endossam ou contrariam seus valores, interesses e estilos de vida como risco, ameaça, adversários e inimigos, para, em seguida, enfrentá-los e transformá-los em objeto de proselitismo e/ou de combate.

Considerações finais


À guisa de conclusão, observa-se que, nas últimas décadas, o pluralismo cultural e religioso deixou de ser interpretado como responsável, necessariamente, pelo enfraquecimento da religião. A relação entre modernização e secularização foi reavaliada e tida como mais complexa do que se pensava. Atenta aos paradoxos da religiosidade em sociedades de alta modernidade, Danièle Hervieu-Léger (2006), por exemplo, observa que quanto maiores a fluidez e a circulação das crenças, o trânsito e a liberdade dos crentes individuais, maior sua necessidade de “nichos comunitários” para compartilhar e assegurar um mínimo de certezas e ancorar as identidades pessoais.

Grupos evangélicos conservadores permanecerão engajados na militância em defesa de seus interesses e valores, no combate a seus adversários e na luta para conservar elementos de uma ordem moral e social que creem estar sendo, malignamente, atacados e destruídos por forças seculares.

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