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19.6.17

ALMEIDA, Ronaldo de. Religião na metrópole paulista. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 56, p. 15-27, 2004.

Transformações ocorreram de forma mais acentuada nas camadas média-baixa e baixa dos grandes centros urbanos, mais especificamente nos da região Sudeste.

O presente artigo busca inicialmente construir um modelo do trânsito religioso a partir da mobilidade de pessoas entre as diferentes alternativas religiosas, para em seguida discutir a eficácia de algumas delas (em especial os pentecostais) entre os mais pobres e revelar as estratégias espaciais que geraram distintas formas de sociabilidade, mais ou menos adequadas ao dinamismo metropolitano.


Trânsito religioso na RMSP


No pluralismo religioso brasileiro há uma polarização. Em outras palavras, uma dinâmica cujos vetores principais são a debilitação do catolicismo como um dos eixos da organização social desse país; a difusão de práticas mais “espirituais” com forte ênfase na emotividade (o que inclui além dos pentecostais, outras religiões e até mesmo a Renovação Carismática Católica); por fim, em aparente contradição com a característica anterior, o aumento dos “sem religião”.

Do ponto de vista da pesquisa do Censo, os evangélicos (protestantes históricos e pentecostais) podem ser considerados os religiosos ideais. Isto é, na sua declaração coincidem, na maioria das vezes, um conjunto mais ou menos uniforme de ideias, rituais, comportamentos, compreensão do mundo etc. Trata-se de uma identidade com fronteiras de pertencimento bastante definidas, por conseguinte, excludentes na mesma intensidade. Em contrapartida, do ponto de vista da circulação de ideias e práticas, a religiosidade evangélica mais recente, especialmente a pentecostal (clássica e neopentecostal), incorpora e é incorporada por outros segmentos com os quais se mantém em estado de competição.

A Renovação Carismática Católica e o padre Marcelo, por exemplo, no seu empreendimento de “readesão” dos católicos ficaram parecidos com os evangélicos. A Igreja Universal do Reino de Deus nos cultos de exorcismo das entidades afro-brasileiras incorporou símbolos e lógicas de funcionamento das religiosidades que se propunha a combater, mais especificamente a umbanda (Almeida, 2003). Como reação à ofensiva pentecostal, a observação de campo recente em federações de umbanda mostrou um movimento pela “normatização” de certos rituais como batismo, casamento e funeral, rituais esses demarcadores do ciclo de vida dos brasileiros e que não faz muito tempo eram hegemonizados pela Igreja católica. Em relação especificamente ao batismo, a referência dos umbandistas é o modelo evangélico, isto é, um ritual de adesão capaz de criar nos adeptos a convicção pessoal do pertencimento exclusivo a uma única fé.

Não somente pessoas transitam entre os sistemas religiosos como também estes se transformam em virtude da concorrência por adeptos.


Estratégias espaciais e sociabilidades pentecostais


Pretendo discutir, por um lado, a adesão religiosa na parcela da população (os mais pobres) onde o trânsito foi mais intenso e, por outro, a dimensão espacial como correlata à concorrência religiosa e geradora de diferentes padrões de sociabilidade entre os adeptos.

Se a mobilidade e a diversificação religiosas são mais acentuadas nos grandes centros urbanos, qual seria a disposição das religiões na RMSP? Segundo os dados do survey e a comparação entre os dois últimos Censos, a mudança religiosa envolveu todos os extratos sociais; contudo, ela ocorreu de maneira mais acentuada nas camadas baixa e média baixa, especialmente entre os “sem religião” e os pentecostais.

De acordo com Lavalle (2001), a partir de uma pesquisa quantitativa na RMSP, entre os mais pobres que participam de alguma associação, cerca de 70% participam de associação religiosa. Logo, o associativismo nas classes menos favorecidas é predominantemente religioso.

A observação etnográfica que vem sendo realizada desde 1996 em Paraisópolis – segunda maior favela de São Paulo com cerca de 80% dos moradores oriundos da região Nordeste – revelou o papel desempenhado pelas religiões na formação de redes de solidariedade e sociabilidade. Na favela, os templos evangélicos abrigam uma densa rede de relações que atraem pessoas em estado de maior vulnerabilidade, como predominantemente ocorre na migração familiar entre o Nordeste do Brasil e o município de São Paulo.

Estudos da década de 1960 e 1970 (Souza, 1969; Willems, 1967; D'Epinay, 1970; César, 1974) problematizaram o crescimento de certas religiões a partir do processo de industrialização dos centros urbanos, que, associado à migração, constitui-se num fator social que explica a adesão à religião. Segundo essa concepção, a adesão seria uma espécie de resposta funcional a estados de anomia social.

Em geral, os nordestinos no Nordeste são católicos, enquanto no Sudeste tendem a se tornar evangélicos. Isso significa que algo deve ter ocorrido nesse processo de deslocamento espacial. Se a explicação teórica já não é satisfatória, o fenômeno permanece: a migração incide sobre a mudança religiosa.

As redes evangélicas trabalham em favor da valorização da pessoa e das relações pessoais, gerando um aumento de autoestima e impulso empreendedor, além de ajuda mútua com o estabelecimento de laços de confiança e fidelidade.

Essas redes atuam em contextos de carência, operando, por vezes, como circuitos de trocas, que envolvem dinheiro, comida, utensílios, informações e recomendações de trabalho, entre outros.

Não se trata de programas filantrópicos como fazem católicos e kardecistas, mas de uma reciprocidade entre os próprios fiéis moradores da favela (entre os quais, os próprios pastores), simbolizada no princípio bíblico de ajudar primeiro os “irmãos de fé” (frequentadores do mesmo templo).

Contudo, na mesma proporção em que essas redes incluem, sobretudo pobres e migrantes, excluem aqueles que não compactuam da mesma identidade religiosa. Os evangélicos de Paraisópolis pouco participam de outros níveis associativos, como partidos, sindicatos, união de moradores e lazer. Os cultos competem com outras atividades no uso do tempo livre; além de as próprias denominações suprirem seus fiéis com entretenimentos como, por exemplo, a formação de grupos de música, teatro, esportes etc., e sempre relacionados à religião.

Se os evangélicos, em especial os pentecostais, recebem cada vez mais adeptos entre os mais pobres da RMSP, quais denominações se encontram preferencialmente entre eles? Os mapas, a seguir, georreferenciam os templos de duas importantes denominações pentecostais (Assembleia de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus) nos três grupos sociais mais pobres do município de São Paulo.

Embora seus membros confessos sejam pobres, os templos da Universal – maior expoente das recentes transformações do campo religioso brasileiro – não se encontram nas regiões de maior vulnerabilidade social, ao contrário do que ocorre com a Assembleia de Deus. Como exemplo, na favela de Paraisópolis existem oito templos da Assembleia de Deus, sete da Deus é Amor e um da Universal.8 Então, onde se encontrariam preferencialmente os templos da Universal?

De acordo com os mapas, as paróquias católicas instalam-se no interior dos bairros, mas preferencialmente nas vias principais, estabelecendo centralidades locais no espaço metropolitano e servindo como referência de localização. Na verdade, os templos católicos têm a capacidade de atrair alguns serviços urbanísticos e, eventualmente, comércio. No entanto, as paróquias demoram a chegar nas zonas de maior vulnerabilidade, mais do que os templos dos evangélicos. O trabalho assistencial da Igreja católica chega a esses lugares por meio de suas pastorais e de filantropias, mas há pouca presença de sacerdotes e templos.

Em torno das paróquias, gravitam, ainda, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que nasceram do redirecionamento da Igreja pós-Vaticano II. As comunidades aumentaram o alcance territorial da Igreja, garantindo-lhe um enraizamento maior.

No Brasil, as CEBs nasceram no seio da Teologia da Libertação, e a RMSP foi um campo fértil para sua multiplicação. No final da década de 1980, a arquidiocese de São Paulo foi subdividida em mais dioceses, o que resultou na multiplicação das paróquias e das comunidades.

Ressalte-se, contudo, que essa descentralização foi uma ação político-administrativa do papado de João Paulo II para reduzir a expansão da chamada igreja progressista; e de forma complementar, foi dado incentivo ao movimento de Renovação Carismática Católica, que desempenha uma reação contra o discurso politizado de setores católicos e oferece uma alternativa à expansão da religiosidade evangélica

Os templos da Assembleia de Deus, por sua vez, encontram-se nas vias principais e, de maneira significativa, no interior dos bairros e em favelas. Embora Paraisópolis esteja na zona Sul, esse mesmo padrão é encontrado, principalmente, na zona Leste, onde Assembleia de Deus está fortemente enraizada (ver mapas). Na paisagem urbana das áreas de maior pobreza em São Paulo, como na zona Leste, são mais visíveis seus equipamentos

A observação de campo revelou que os pequenos templos da Assembleia de Deus (e também os da Deus é Amor) têm uma estrutura interna organizada a partir de redes familiares, muitas delas montadas no processo migratório.

Por fim, segundo os mapas, vê-se a Igreja Universal concentrada basicamente nas vias principais, distante das áreas de maior vulnerabilidade, em comparação com a localização dos templos da Assembleia de Deus. A implantação dos templos e, mais recentemente, a construção de grandes catedrais visam a dois objetivos: visibilidade e adesão em massa. Esse tipo de construção imponente nas vias principais é uma estratégia de visibilidade e marketing que se articula com sua presença na mídia e na esfera política, visto que para sua efetivação necessitam de trâmites burocráticos nas administrações municipais. A intenção é parecer maior do que realmente é.

A construção de templos maiores nos segmentos do protestantismo histórico10 e do pentecostalismo clássico11 costuma ocorrer conforme o crescimento da comunidade de fiéis, ou seja, é fruto do sucesso da associação local. Na Universal, ao contrário, primeiro é instalado o templo para depois se obter adeptos. E, ao contrário das paróquias católicas, que fundam centralidades locais, os templos da Universal são construídos em lugares com intensas dinâmicas urbanas já estabelecidas. Não por acaso eles se encontram próximos a terminais de ônibus e pequenos centros comerciais.

Como classificar o tipo específico de sociabilidade produzido pela Universal? Sua estratégia de localização (nas vias principais e próximos a terminais de ônibus) e a arquitetura dos templos (catedrais com amplo salões e poucas subdivisões espaciais) sugerem uma prática religiosa de fluxo e de massa bastante adequada à dinâmica urbana. Seus templos, assim como os da Igreja católica, permanecem com as portas abertas durante todo o dia, e neles são realizados de três a cinco cultos diariamente. A qualquer momento é possível recorrer a um templo da Universal com facilidade e ao seu “socorro espiritual”. A ida é ainda estimulada pelos programas na televisão que, durante a pregação dos pastores, apresentam no “pé da tela” os endereços de templos próximos à casa do telespectador. Como costuma dizer o bispo Macedo, sua igreja é um “pronto-socorro espiritual”. De fato, trata-se de serviços religiosos aos quais se recorre em momentos de aflição sem um compromisso mais restrito com a comunidade moral.


Considerações finais


As religiões organizam circuitos de reciprocidade (simbólica e material) e produzem interações mais ou menos afinadas com as características da metrópole (como espaços de vulnerabilidade social e/ou de intensa circulação de códigos simbólicos). Disso resultam diferentes padrões de sociabilidade, cujo elemento estruturante é a opção religiosa.

As diferentes igrejas podem ser divididas em dois grupos: com organização eclesial hierárquica e centralizada (Católica e Universal, por exemplo) ou com relativa autonomia dos templos (Batista e Assembleia de Deus, por exemplo). O primeiro caso caracteriza-se, entre outras coisas, pela centralização das finanças e da distribuição dos sacerdotes, o que permite maior racionalidade na distribuição dos templos pela RMSP e, por consequência, o delineamento de estratégias espaciais. O segundo produz uma ocupação do espaço mais “involuntária”, regida pelas determinações socioeconômicas dos fiéis e do entorno dos templos (D'Andrea, 2003).

Por outro lado, a localização, o tamanho e a dinâmica interna desses lugares de culto geram (e/ou são causa de) sociabilidades específicas. Isto é, em alguns templos predominam relações relativamente impessoais, como nas grandes concentrações, que produzem um vínculo forte entre a multidão e o pregador (padre Marcelo e bispo Macedo), e fraco nas relações horizontais entre os fiéis; em outros vigoram relações do tipo comunitária ou “congregacional”, baseadas em redes familiares e/ou de vizinhança. No primeiro caso, as relações entre as pessoas em pouco extrapolam a vivência nos templos, diferente do padrão “congregacional”, em que as relações religiosas se sobrepõem a outros vínculos societários, como parentesco e relações econômicas.

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