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8.6.17

GIUMBELLI, Emerson. A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. Relig. soc. [online]. 2008, vol.28, n.2, pp.80-101.

A PRESENÇA DO RELIGIOSO NO ESPAÇO PÚBLICO: MODALIDADES NO BRASIL

Como entender, no Brasil, a presença legitimada da religião no espaço público?

A presença do religioso na sociedade está sempre relacionada com os dispositivos estatais, apesar ou por causa da laicidade.

No Brasil, em se tratando de laicidade, nos deparamos com a aurora republicana como marco.

Rompe-se com o arranjo que oficializava e mantinha a Igreja Católica; o ensino é declarado leigo, os registros civis deixam de ser eclesiásticos, o casamento torna-se civil, os cemitérios são secularizados; ao mesmo tempo, incorporam-se os princípios da liberdade religiosa e da igualdade dos grupos confessionais, o que daria legitimidade ao pluralismo espiritual.

A lei de 1893, por exemplo, menciona a proibição de fins ou meios “ilícitos” ou “imorais”. Mais importante era a idéia tácita de que os coletivos religiosos teriam as condições para se auto-regularem de modo a se manterem dentro dos limites das leis e da “moralidade”.

Assim, um regime de poucas restrições e especificações sobre as associações religiosas – como queria a Igreja Católica – precisa ser entendido no quadro que articula uma expectativa de auto-regulação e uma regulação indireta do domínio religioso.

Todo o debate que desemboca no Código Civil de 1917 “versou quase nunca sobre a ‘religião' que teria ‘liberdade', quase sempre sobre a ‘liberdade' de que desfrutaria a ‘religião'” (Giumbelli 2002:276).

Código Penal trazia dispositivos que criminalizavam a prática do “espiritismo” e a da “magia e seus sortilégios”

A resposta dos porta-vozes espíritas aos ataques – em defesas judiciais, em manifestações na imprensa – enfatizou o enquadramento de suas práticas à noção de “religião”. Para tanto, a categoria “caridade” foi crucial.

A cura proporcionada por meios mediúnicos – argumentavam os espíritas –, a que acorriam livremente os mais diversos indivíduos, tinha como meio e como fim a caridade. Não esperava pagamento de qualquer tipo como contrapartida material e significava o exercício de um princípio inerente e necessário à religião professada.

Pode-se afirmar que o argumento espírita da caridade produziu uma extensão da modalidade moldada a partir do argumento católico da liberdade. Em outras palavras: é legítimo que essas pessoas que são as associações religiosas desenvolvam terapêuticas “espirituais” cuja presença no espaço público, se não aceita, é bastante tolerada.

Sabe-se que muitos terreiros de umbanda e candomblé, por outro lado, não possuem registro em cartório. Um comentarista, que é também militante, constata que “na cidade de São Paulo ainda hoje nenhum templo de candomblé tem assegurada a imunidade tributária, os ministros não conseguem obter inscrição no sistema de seguridade social e os cartórios se recusam a reconhecer a validade dos casamentos celebrados no candomblé” (Silva Jr. 2007:315).

No quadro do Congresso Afro-Brasileiro realizado em Salvador, no ano de 1937, um memorial, elaborado por Édison Carneiro, foi dirigido ao governador baiano com o fim de apoiar a reivindicação de “liberdade religiosa” para as “seitas africanas”. Os termos utilizados são significativos, por evocarem a posição de outros intelectuais e noções ancoradas na Constituição então vigente:

Cada povo tem a sua religião, e sua maneira especial de adorar a Deus – e é o candomblé a organização religiosa dos Negros escravos e dos Homens de Cor da Bahia, descendentes dos Negros escravos, que lhes deixaram, como herança intelectual, as várias seitas africanas em que se subdividem as formas religiosas trazidas da África (...). Como têm provado, suficientemente, os mais argutos observadores, notadamente Nina Rodrigues e Arthur Ramos, e os Congressos Afro-Brasileiros já realizados (...), nada há, dentro das seitas africanas, que atente contra a moral ou contra a ordem pública (art. 113 da Constituição Federal). Ao contrário, tanto Nina Rodrigues e Arthur Ramos quanto os intelectuais que colaboraram nos citados Congressos, todos, sem exceção, têm reclamado a liberdade religiosa dos Negros como uma das condições essenciais para o estabelecimento da justiça entre os homens. (apud Dantas 1988:190).

Controvérsia jurídica, no estado do Rio Grande do Sul, sobre o abate de animais em cultos afro-brasileiros:

A lei vedava que se ofendesse ou agredisse fisicamente um animal e exigia que se desse “morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para o consumo”.

Houve, em seguida à aprovação da lei, mobilização entre lideranças do universo religioso e dos movimentos negros.

A mobilização teve êxito, conduzindo à nova lei, que acrescentava a seguinte disposição às provisões já citadas: “Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana”.

Elaborou-se uma base diferencialista para sustentar a presença dessas religiões no espaço público brasileiro, que é distinta da base que se configurou para permitir a presença do catolicismo e do espiritismo no mesmo espaço.

É difícil sobrestimar o impacto da inserção dos evangélicos na sociedade brasileira das últimas décadas. Seu crescimento numérico talvez seja um aspecto menor. Por conta de sua ação, o campo da política, definida estritamente, é incapaz de ignorar atualmente o fator “religioso”.

A indicação e o apoio a candidaturas legislativas por parte de igrejas, a mobilização para a defesa de interesses supradenominacionais (caso das “frentes parlamentares”), a identificação com titulares de postos do Poder Executivo – são todos movimentos, ocorridos com sucessos e revezes, protagonizados pelos evangélicos que têm se dedicado ao uso da identidade religiosa como atributo eleitoral (Machado 2008; Oro 2003).

Em outro plano, a prosperidade, ainda que seja um termo específico a certas de suas vertentes, serve para apontar outras provocações lançadas pelos evangélicos.

Na leitura de Montero (2006), trata-se de uma inversão do princípio instituído, prevalecente no campo religioso e socialmente legitimado, da caridade: ao invés de doar, a religião pede.

Tal mensagem se articula em práticas permeadas por milagres, testemunhos e exorcismos, constituídas em diálogo próximo com as referências populares e, ao mesmo tempo, exercitadas em espetáculos midiatizados que são o correspondente virtual da ocupação de espaços públicos bem concretos por multidões religiosamente mobilizadas (além de Birman, ver Corten 1996 e Mafra 2002). T emos aí, novamente na leitura de Montero (2006), uma segunda inversão, pela qual magia e religião deixam de ser opostas e passam a se conciliar.

Concordo com tudo isso. Apenas não vejo como essas inovações ou provocações se projetariam no plano que viemos acompanhando ao longo deste texto.

Embora ainda pouco analisada, uma mobilização em 2003 percorreu sobretudo o universo evangélico envolvendo um protesto contra o novo Código Civil14. Alegou-se que este criava a possibilidade de um controle das igrejas por parte do Estado, atentatório à liberdade religiosa. Isso ocorreria, continuava o protesto, porque as organizações religiosas passaram a ser tratadas como qualquer outro tipo de “associação”, uma das modalidades de pessoa jurídica de direito privado previstas no Código. O texto legal estipula algumas atribuições do poder público sobre a vida das associações, reforça os direitos de membros em relação aos dirigentes, reitera a proibição de lucro, exige a manutenção dos registros contábeis e a necessidade de declaração de renda.

As igrejas foram sim, em certos aspectos, tratadas diferencialmente.

O item mais evidente é o da imunidade tributária, que adquiriu estatuto constitucional desde 1946, mas já era aplicada anteriormente por conta de legislações mais específicas. Outros itens tomam novamente como referência a Igreja Católica e envolviam: a permissão para formas hierarquizadas de organização de coletivos religiosos, o que incluía o reconhecimento de personalidade jurídica a entidades, como dioceses e paróquias, cuja existência era regida por leis canônicas; a imprescritibilidade e inalienabilidade dos bens religiosos, sobretudo os templos, o que significava que os coletivos religiosos não eram restringidos quanto ao recebimento de bens e eram protegidos quando ao desembaraço deles (para detalhes, ver Giumbelli 2002).

Como solução, chegou-se a uma modificação no texto da lei que foi rapidamente definida e acordada,15 e que resultou na seguinte estipulação: “São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento” (Art. 44, § 1º)16.

Em suma, pretendendo “deixar como era”, o que se conseguiu foi introduzir a especificação dos coletivos religiosos dentro da principal lei civil brasileira. Por ora e por conta da redefinição do Código Civil, as igrejas figuram como exceções à norma geral.17

A outra situação que enfocarei com envolvimento dos evangélicos é o projeto de lei proposto por Marcelo Crivella, apresentado no Senado em 2005.

A proposta de Crivella, se aprovada, possibilitaria que, além de museus, bibliotecas e arquivos, também “templos” fossem beneficiados com recursos no âmbito do PRONAC (alteração na Lei Rouanet).

Considerando essa controvérsia, gostaria de ressaltar alguns aspectos das justificativas apresentadas por Marcelo Crivella. No texto que acompanha a proposta original, destaca-se o papel civilizatório da religião na edificação da cultura nacional.

Por ocasião da visita papal ao Brasil, foi divulgada a existência de uma negociação entre o Vaticano e o governo local, por iniciativa do primeiro.

O Vaticano manifestou interesse em garantir o ensino religioso obrigatório em escolas públicas e a entrada de missionários em áreas indígenas.

Creio que estivemos sempre às voltas, nos temas e situações que preencheram este texto, com a questão das fronteiras. Primeiro, aquelas entre Estado e religião, que não se configuram necessariamente como muro que impede as relações.

Segundo, tratamos das fronteiras entre forças e segmentos do campo religioso.

Em se tratando do Brasil, temos uma situação interessante, pois as “minorias” religiosas não se comportam da maneira esperada (Giumbelli 2006). Para ficar apenas no caso dos evangélicos: suas reivindicações recentes por “liberdade religiosa”, essas sim típicas de uma minoria, vêm seguidas de ações e estilos que insinuam um projeto de maioria.

O segundo tema a merecer provocações é o das definições de “espaço público”.

Sei bem que tais definições existem, tanto em versões liberais, quanto em versões habermasianas.

Prefiro, no entanto, adotar a expressão em sentido o mais lato possível, percorrendo empiricamente as situações variadas que podem encarná-la.

Vê-se que não se pode problematizar o espaço público sem atentar para as condições dos atores que se localizam na sociedade; a noção, no entanto, coloca permanentemente em jogo a constituição e o papel do Estado. Estamos, assim, ainda às voltas com o argumento da secularização e suas expectativas para a relação entre religião e espaço público.

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