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20.6.17

PIERUCCI, Antônio Flávio. O Crescimento da Liberdade Religiosa e o Declínio da Religião Tradicional: A Propósito do Censo de 2010. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (orgs.). Religiões em movimento: o Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013.

Liberdade religiosa como livre concorrência. 

Nunca houve tanta liberdade religiosa no Brasil como agora. Nunca os profissionais religiosos se sentiram tão livres e à vontade como agora para lutar entre si por todos os meios e a toda hora a fim de assegurar a reprodução ampliada de sua fé.

Nessa urgência, o que lhes importa acima de tudo é converter. Converter é ipso facto “infidelizar”. 

No caso do Brasil, o estoque de fiéis “infidelizáveis” visado prima facie pelas religiões de conversão é o catolicismo; só podia ser.

De todo modo, impacta o sociólogo (e em grande medida o estimula) o fato de que em matéria de religião se esteja vivendo hoje no Brasil um regime concorrencial cada vez mais desregulado pelo Estado e fora do controle da religião dominante.

Não foi a sociologia nascente que na pena de Durkheim associou semanticamente religião com efervescência? Pois é, a coisa por aqui anda mesmo efervescente.

Pessoas livres (re)querem Estados laicos.

Quando falo propositivamente em secularização, refiro-me especificamente à secularização do Estado com seu ordenamento jurídico, não à secularização da vida. A secularização que importa antes de tudo, repito, é a secularização do Estado como ordem jurídica.

Mesmo porque a secularização da ordem jurídica [Rechtsordnung] de um Estado é menos enganosa como fato empírico observável, e até mais acessível à mensuração e comparação (GIUMBELLI, 2002) do que a secularização dispersa das ordens de vida [Lebensordnungen].

Para o Brasil o disestablishment foi a pedra fundamental e continua sendo a pedra de toque da nossa modernidade religiosa, sua entrada principal.

Parece que só agora, transcorrido o século XX, nós estamos conseguindo tomar consciência de que ele foi de fato, para os brasileiros, um século de crescente secularização, mas antes de tudo de secularização do Estado, com o estabelecimento progressivo de limites à competência do poder público em matéria de religião.

No decorrer de nossa história republicana, iniciada na última década do século XIX, o Brasil passou por “um longo processo histórico-religioso”, gradual, mas constante; quase imperceptível em seus avanços paulatinos, mas muito bem marcado no traçado da trajetória percorrida: a progressiva demissão do estamento eclesiástico católico, a destituição das regalias e precedências monopolísticas a ele reservadas por quatrocentos anos como religião oficial, do período colonial até o final do Segundo Império.

Os cento e poucos anos que já gozamos de República têm sido de desregulação religiosa crescente, de desmontagem lenta, mas progressiva, de uma gigantesca reserva de mercado religioso que ainda hoje estrebucha.

A concorrência franca possibilitada pelo disestablishment mais cedo ou mais tarde acabou resultando em agentes religiosos menos acomodados, mais dinâmicos e dispostos, bem como em organizações religiosas pouco a pouco mais racionalizadas e eficientes na mobilização do laicato, na conquista de espaços e não raro de votos e cargos eletivos, no deslocamento e pilhagem mútua de séquitos, públicos, clientelas e membresias molecularmente constituídas pela multiplicação provocada de conversões individuais, em detrimento das identidades coletivas herdadas.

É, pois, dos vendedores de religião e não dos consumidores que provém a efervescência que realmente interessa ao sociólogo da religião no Brasil. O resto é consequência.

O catolicismo em declínio 

O catolicismo no Brasil encolhe. Ora, mas não é justamente essa a ineludível sina das religiões tradicionais majoritárias em qualquer parte do mundo, uma fatalidade sociocultural quase tão implacável quanto a genética dos caranguejos?

Desde seus mais remotos inícios, nos anos de 1950, a sociologia da religião praticada no Brasil tem sido uma sociologia do catolicismo em declínio (PIERUCCI, 1999).

Por enquanto, o que o Censo diz é que o Brasil continua mudando nos conteúdos de sua cultura, continua se destradicionalizando em termos religiosos, mas avança a primeira década do novo século, nada nada, com 123 milhões de católicos declarados em 190 milhões de habitantes. “É católico que não acaba mais”, somos tentados a pensar, “muito mais da metade, ainda tem uma maioria folgada”.

Enquanto o neopentecostalismo triunfante festeja sua hora de construir catedrais, o catolicismo, como vem acontecendo em países da Europa, já pode pensar em desconsagrar igrejas para reaproveitar espaços ociosos.

Pós-tradicionalização religiosa acelerada

Ao todo são três as religiões que, comumente classificadas em sociologia como tradicionais, mesmo que cada qual seja tradicional a seu modo e medida, hoje mostram sérios sinais de cansaço, mais que isso, de exaustão em sua capacidade de reprodução ampliada.

Em primeiro lugar, como vimos, o catolicismo.

Em segundo lugar o luteranismo. Ninguém fala muito nisso, sabe-se lá por que, mas o luteranismo, “tipo-ideal-em-carne-e-osso” do chamado “protestantismo de imigração”, também se mostra numericamente minguante neste Brasil. Seu decréscimo é notável até como sintoma de um processo de destradicionalização que prolifera.

Por fim, a umbanda é infelizmente também declinante. Digo infelizmente por conta da significação cultural que essa formação religiosa adquiriu em nossa história republicana, aos olhos de toda uma elite intelectual que se deixou embalar na crença de um “Brasil brasileiro” e empenhou-se na enunciação normativa de uma identidade brasileira moldada em forma sincrética para fazer jus à nossa constituição cultural mestiça.

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