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21.6.17

RIVERA, Paulo Barrera. Pluralismo Religioso e Secularização: Pentecostais na periferia da cidade de São Bernardo do Campo no Brasil. revista de estudos da religião, p. 50-76, 2010.

A questão central deste texto é a seguinte: poderiam os pentecostais escapar ao efeito do avanço da sociedade moderna nos sistemas e instituições religiosas, mais ainda nas particulares condições da periferia urbana? As sociedades latinoamericanas, atingidas em vários níveis pela modernidade, com sua incapacidade para responder às expectativas criadas por elas mesmas, teriam substituído tais expectativas por experiências irracionais como as do culto pentecostal. 

Entendendo secularização como perda da capacidade de influência social e cultural da religião para impor e regular crenças e práticas e, também, o aumento da capacidade das sociedades para guiar seu próprio destino, sem participação das instituições religiosas, isto é, a esfera humana ganhando autonomia em relação aos desígnios divinos, esta pesquisa estuda a relação entre Pentecostalismo e o processo de secularização na periferia social da cidade São Bernardo do Campo (SP).

Desenvolvimento e enfraquecimento religioso

Na religião, na verdade, todo desenvolvimento parece apenas aparente, pois leva a um distanciamento de seu caráter radical original, porque apenas a “religião ancestral” era realmente estruturadora do mundo das pessoas e ostentava caráter de inquestionável. Desenvolvimento significa perda das raízes e não aprofundamento. A religião transforma-se irreversivelmente ao se desenvolver. a religião mais complexa e completa, a mais radicalmente estruturadora do mundo, é aquela que se encontra no início desse processo que de certa maneira culmina com as religiões monoteístas. As transformações posteriores – supostamente um avanço – são etapas no caminho do questionamento daquela religião original realmente estruturadora das sociedades quanto inquestionável (GAUCHET, 1985: 12). A essência primitiva do fato religioso encontra-se na sua disposição contra a história. Na religião em estado “puro”, o presente depende absolutamente do passado mítico.

O “desenvolvimento religioso” (Weber) pode ser chamado assim de “expropriação do religioso” (GAUCHET, 1985: 17).

As sociedades religiosas, com reduzidíssimo conhecimento do mundo em que viviam e com incapacidade de explicar seu próprio mundo natural, eram, de fato, sociedades que viviam num mundo encantado.

Um argumento muito utilizado para deslegitimar a proposta de que as sociedades latinoamericanas são atingidas pela secularização é o crescimento de grupos religiosos, a sua expressão pública, os seus cultos e o espaço na mídia. Mas, esse crescimento religioso não constitui um retorno à época da heteronomia da religião. Muito pelo contrário: o enfraquecimento das tradições traz como consequência a proliferação de opções religiosas e o “declínio do compromisso religioso” (WILSON, 1976).

Secularização, Igreja e Estado

Uma sociedade não secularizada seria aquela na qual a religião tem autoridade no plano do saber e na esfera dos valores. A secularização corresponde ao desenvolvimento e à autonomia das ciências, que forçaram as portas do saber teórico e minaram a autoridade social da religião. A escola pública, por exemplo, é clara expressão de laicidade, embora no Brasil continue a discussão sobre o lugar da disciplina “Ensino Religioso”.

entendemos a secularização em duplo sentido: de um lado perda da religião de sua capacidade para impor e regular crenças e práticas. De outro, as sociedades reivindicando sua capacidade de orientar seu destino sem a participação da religião.

A observação da realidade social da periferia urbana mostra uma relativização da importância da religião na vida das pessoas. Escolhe-se a religião segundo as urgências “mundanas”, que, na periferia, são mais fortes, e da mesma forma se as abandona.

A cidade moderna e sua periferia

Complexos processos de mudança social, econômica e política estão na base desse fenômeno que o termo “urbanização” sintetiza. As cidades são resultado do avanço do capitalismo industrializado e da modernidade em geral. Não a lugar, neste texto, para analisar esses processos, mas, a literatura é vasta e eloquente para sustentar a afirmação de que esses processos produziram sociedades muito desiguais: centros urbanos com regiões que concentram maior poder político e econômico, e espaços periféricos sem infraestrutura básica e pouca ou nula presença do Estado. A cidade moderna na América Latina produziu ao mesmo tempo riqueza e pobreza (SILVEIRA, 2004). Nas palavras de Santos (2000) trata-se do caráter perverso da sociedade global contemporânea.

Do sentido amplo do conceito “periferia” destacamos a pobreza, como destituição dos meios de sobrevivência física e a insuficiência de renda e de trabalho. Também a inexistência de infraestrutura física adequada nos locais de moradia, que está vinculada à inoperância ou ausência de políticas sociais.

Com “periferia”, então, não nos referimos simplesmente a uma situação física geométrica. O sentido físico e geográfico de distância é insuficiente para pensar a periferia. Como regra geral, a população que se mobiliza em direção das periferias está composta de pessoas com maior carência econômica e social. Mas, também classes mais abastadas se mobilizam a regiões distantes do centro e se fecham em seus condomínios procurando segurança, lazer, etc. práticas essas que sem dúvida geram segregação espacial (MARQUES & BITAR, 2002 e CALDEIRA, 2000).

As religiões presentes na periferia fazem parte dessa dinâmica social e cultural, com destaque para as igrejas pentecostais, muitas das quais fazem parte da paisagem da favela desde suas origens.

No caso específico do Brasil, ao se falar no crescimento da periferia urbana, devemos lembrar a re-configuração geográfica da pobreza entre 1940 e 1970, período em que a população das áreas urbanas do Brasil passa de 12 milhões para 130 milhões. Segundo dados da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano2, no ano de 1940 o Brasil tinha 31,1% de população urbana, já no ano 2000 a população urbana era de 81,2% e no Estado de São Paulo de 93,4%. Nesse mesmo período se expandiram os cinturões de pobreza urbana que caracterizam as cidades desse país, mas o crescimento nesse período é fenômeno comum à maioria dos países de América Latina. Para o Brasil, assim, a uma tradicional concentração de pobreza rural (Norte e Nordeste) se somou outra concentração de pobreza urbana. Quando chegamos ao final do século XX, em 1990, as regiões metropolitanas de Rio de Janeiro e de São Paulo congregavam mais de 50% do total da população pobre metropolitana do Brasil. Assim, as regiões metropolitanas dessas duas cidades se constituem em lugar privilegiado da observação do fenômeno da “periferização” urbana e da multiplicação e expansão das favelas.

A periferia do ABC paulista 

É conhecida a capacidade das lideranças pentecostais de integrar os novos convertidos a uma comunidade de “irmãos”. Segundo Sampson e Groves (2009), há uma relação entre desorganização social e crime: à pouca participação em organizações de bairro e organizações religiosas corresponde maior tendência à criminalidade. As igrejas pentecostais podem ser consideradas como espaços de organização social nos bairros da periferia. Pesquisas recentes têm demonstrado a importância do associativismo religioso em favelas de Rio de Janeiro (ZALUAR 1998; MAFRA 1998 e ALVITO 2001) e de São Paulo (ALMEIDA e D´ANDREA 2004; LAVALLE e CASTELLO 2004). 

O bairro “Montanhão” e a favela “Areião”

O Montanhão é o bairro com maior número de moradores (116.773 em 2004) e também o bairro com maior número de habitantes por domicílio (3,84) do município.

No campo da economia e da educação, o bairro mostra diferenças sensíveis em relação ao resto do município. Destaque-se o fato de ter a maior porcentagem (6,87) de chefes de domicílio que recebem até um salário mínimo, e maior porcentagem também de chefes de domicílio sem instrução ou com menos de um ano de estudo (11,11).

Os moradores da favela devem caminhar em torno de dois quilômetros para chegar à escola. Na avaliação de 2008 do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), detectou-se que a escola pior avaliada está precisamente no bairro em questão. Não há equipamento municipal de cultura nem de saúde. Para ser atendidos, os moradores do bairro procuram os postos de saúde do centro de SBC ou de Riacho Grande. Quanto a esporte e lazer, o bairro tem apenas uma quadra de terra para futebol.

Pentecostalismos na periferia

A partir dos Anos 80, a indústria de São Paulo começa a mostrar incapacidade para absorver a mão-de-obra dos migrantes que não paravam de chegar e, com isso, acelera o crescimento das periferias e o desemprego de seus moradores.

A respeito dos pentecostais, que, segundo os dados censitários, constituem a forma religiosa de maior crescimento nas últimas décadas, os estudiosos da religião enfatizam que crescem especialmente entre os mais pobres.

Nas periferias de SBC encontramos os mais diversos pentecostalismos - cabe, assim, falar em um pluralismo pentecostal constituído por um leque de opções pentecostais que se oferecem aos indivíduos. Mas, as escolhas religiosas, entre as diversas igrejas pentecostais, são feitas por razões diversas, que incluem também razões não-religiosas.

A violência como prática de indivíduos e grupos (civis, policiais ou militares) ou como resultado das desigualdades sociais pode ser considerada um procedimento histórico consolidado que se volta de maneira mais direta contra as camadas sociais mais pobres. Nessas iniciativas, mais tarde ou mais cedo torna-se inevitável o diálogo com o chamado “poder local”, sem cuja participação qualquer projeto de prevenção ou combate à violência corre grande risco de ineficácia. O poder local, entendido como o conjunto de iniciativas, mais ou menos espontâneas, mais ou menos institucionalizadas e mais ou menos politizadas, que conseguem eficácia na tomada de decisões sobre problemas locais, se constrói sempre a partir da realidade do dia-a-dia do lugar específico onde moram as pessoas que são objeto e sujeito de violência. As igrejas fazem parte desse dia-a-dia e, nesse sentido, é importante pensar a sua participação na dinâmica do poder local. Ainda mais enquanto as políticas de segurança pública costumam depender de períodos eleitorais, alternância do poder, etc., o poder local costuma gozar de permanência e presença constante. 

Os estudos sobre a violência demonstram que seus efeitos mais graves não se distribuem de forma aleatória. São, sobretudo, os jovens pobres e negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, os que mais sofrem os efeitos da violência (SOARES, 2005). As igrejas evangélicas tão presentes na periferia urbana concentram grande quantidade de população negra.

Pluralismo religioso na favela 

Estudiosos das religiões no Brasil têm prestado atenção, mais recentemente, ao papel das práticas religiosas nessas regiões periféricas. O tema mais frequente dessas pesquisas é a participação de grupos religiosos nas “redes solidárias”, assim, por exemplo, o trabalho de MEDEIROS e CHINELLI sobre a favela do Borel, no Rio de Janeiro (2003).

Tratando-se mais precisamente da presença pentecostal nas periferias urbanas, pode-se afirmar, sem dúvida, que as igrejas pentecostais são as mais numerosas e diversas atuando nessas regiões das grandes cidades. No Brasil, o tamanho das metrópoles e o rápido crescimento urbano das últimas décadas que coincide no tempo com o grande crescimento pentecostal impressiona, mas o fenômeno do crescimento pentecostal especialmente nas periferias urbanas é comum a outros países da América Latina

O anel periférico em torno da metrópole paulistana é o espaço geográfico e sócio-econômico onde os pentecostais estão mais presentes, como mostra o mapa seguinte (fig.1).5 

Os seguintes mapas mostram que o lugar ocupado pelos pentecostais se sobrepõe ao lugar ocupado por mais moradores com menos rendimentos (fig. 2) 

Finalmente, os pentecostais estão também nas regiões com maior população com baixos níveis de estudo, como mostra a fig. 4.

Pensando a questão dos pentecostais nas favelas, em outro nível de observação, mais focado em regiões específicas, a pesquisa comprova importante interação dos pentecostais com a realidade social e econômica da favela, com efeitos na forma de interpretar a tradição religiosa por parte dos seguidores (FOERSTER, 2009). Nossa pesquisa na favela “O Areião”, em São Bernardo do Campo, atualmente em andamento, está mostrando questões inéditas quanto ao papel dos evangélicos nessa realidade específica. Gostaríamos de destacar dois grandes aspectos dessas questões, de um lado o pluralismo pentecostal na favela e, do outro, o fato aparentemente contraditório da variedade da oferta religiosa simultânea à diminuição da importância da religião na vida dos moradores da favela.

No bairro em questão há verdadeira diversidade de opções religiosas pentecostais que consideramos constituir um pluralismo religioso. A julgar pela opinião dos pentecostais que moram no lugar, podemos dizer que não é apropriado colocar todos os grupos pentecostais como sendo parte de uma mesma coisa.

Em poucas palavras, cada grupo pentecostal produz sua própria “técnica corporal” (BARRERA RIVERA, 2005b), mas os seguidores desenvolveram habilidades para se utilizar de variadas técnicas corporais segundo o grupo do qual participam no momento. 

Em conclusão, o pluralismo de opções religiosas no bairro que estudamos é basicamente pentecostal.

Em primeiro lugar, é necessário destacar que essa situação de pluralidade de opções religiosas acontece num contexto quase fechado. No sentido de que as pessoas que moram no bairro dificilmente se deslocam para fora dele por motivos religiosos. Encontramos poucas pessoas que congregam em igrejas localizadas fora do bairro. Essa situação se apresenta bastante lógica e prática, pois os meios de transporte público são insuficientes e implicam sempre em despesas extras.

Por que ir até outro lugar da cidade, quando no próprio bairro há diversos cultos oferecidos com opções de dias e horários diversos? Entre os entrevistados, encontramos pessoas que vieram morar no Areião procedentes de outros municípios do Grande ABC,e filiaram-se a outras igrejas diferentes da igreja anteriormente frequentada. 

A pesquisa de contextos sociais com pluralidade de opções religiosas tem demonstrado de forma suficiente que quanto mais amplas as opções religiosas, maior também o trânsito e, consequentemente, maior a instabilidade da relação entre seguidores e instituições religiosas.

as pessoas estão expostas constantemente a uma variedade de ofertas religiosas fisicamente concentradas no mesmo bairro.

Todos os grupos pentecostais são objeto de incursão e abandono. Nenhuma delas se salva dessa infidelidade ou de fidelidade transitória.

A Congregação Cristã tem atrativos muito interessantes para os moradores da favela, tais como a cuidadosa rede de assistência social articulado em torno do que eles chamam de “ministério da piedade”, também o fato de ser a única igreja pentecostal que não cobra nada em dinheiro de seus seguidores e suas autoridades não recebem salários, entre outros.

É um fato comum mudar de igreja, provavelmente por isso essa prática é legítima, reconhecida, válida, tanto para os pentecostais quanto para os moradores que não são pentecostais.

Diferente e em oposição a isso, não é bem vista a múltipla pertença: fazer parte simultaneamente de mais de uma igreja não é aceito e é uma prática criticada. 

Secularização na favela

O impacto da modernidade, os efeitos da urbanização no campo cultural, a industrialização capitalista e o avanço do conhecimento levaram a importante mudança no papel das religiões nas nossas sociedades e na vida dos indivíduos. Essa mudança significa fundamentalmente o enfraquecimento da autoridade religiosa sobre as pessoas que passaram aos poucos a ver as religiões mais como recursos a serem acionados segundo as circunstâncias ou necessidades que como princípios inquestionáveis e ultraterrenos aos quais se deve apenas obediência. 

É interessante também destacar, na fig. 6, o “Perfil religioso” da cidade de São Paulo, em que os “evangélicos pentecostais” e os “sem-religião” praticamente se sobrepõem de maneira que ambos aparecem identificados com a mesma cor, o rosa.

Ao cruzar os dados censitários (2000) dos “sem-religião” com os de raça e escolaridade, detectou-se também que havia bom número de analfabetos, de pessoas com baixa escolaridade e de negros nesse grupo (BARRERA, 2005a). 

Cabe destacar, ainda, que todas as pessoas que se dizem “sem-religião” já foram frequentadoras de, pelo menos, duas ou três diferentes igrejas. Entre os pentecostais também encontramos uma visão pouco “encantada” da realidade. Ser um crente, nesse bairro, significa de fato estar à procura de diversos benefícios absolutamente legítimos e mundanos, no sentido weberiano do termo. Vejamos as evidências disso.

Dona Elena, de 50 anos, filha de migrantes nordestinos (Ceará), que nunca foi católica, cuja mãe sempre foi pentecostal (Assembléias de Deus), conta que mandava suas crianças assistirem a missa “porque o Padre dava, no final do mês, uma boa cesta básica a quem frequentava a missa”.

Rosana, de 24 anos, também filha de avós migrantes e fiéis da Congregação Cristã, mãe de duas crianças, diz que alguns anos atrás: “(...) decidi frequentar a Congregação (CCB) porque precisava encontrar um bom marido”. 

A pesquisa dos motivos da pertença religiosa entre moradores da periferia urbana mostra dois aspectos importantes que podem ser relembrados aqui. Um é o de que a pertença religiosa de fato ameniza a exclusão do mercado de trabalho. O outro é de que especialmente os grupos pentecostais têm importante capacidade de inclusão social.

Penso ser necessário chamar a atenção para as evidências de explícito utilitarismo dos benefícios objetivos da religião por parte dos moradores da favela. Em consonância com essa visão utilitarista e legítima da religião e de seus benefícios, as pessoas abandonam o grupo religioso quando as “coisas se acalmam” e o fazem sem remorso evidente nos depoimentos.

Essa atitude perante os grupos religiosos e a frequência dos “sem-religião” correspondem, sem dúvida, a uma visão pouco encantada da realidade social e do lugar da religião nela. Os entrevistados mostram um conjunto de práticas sociais que denuncia compreensão moderna e secularizada da religião.

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