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9.6.17

WEBER, Max. A ética protestante e o 'espírito' do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

1. Confissão religiosa e estratificação social


Basta uma vista de olhos pelas estatísticas para constatar o caráter predominantemente protestante dos proprietários do capital e empresários, assim como das camadas superiores da mão de obra qualificada, notadamente do pessoal de mais alta qualificação técnica ou comercial das empresas modernas.

Está claro que a participação dos protestantes na propriedade do capital, na direção e nos postos de trabalho mais elevados das grandes empresas modernas industriais e comerciais, é relativamente mais forte, ou seja, superior à sua porcentagem na população total, e isso se deve em parte a razões históricas que remontam a um passado distante em que a pertença a uma confissão religiosa não aparece como causa de fenômenos econômicos, mas antes, até certo ponto, como consequência deles.

Mas aí se levanta a questão histórica: qual a razão dessa predisposição particularmente forte das regiões economicamente mais desenvolvidas para uma revolução na Igreja?

A Reforma significou não tanto a eliminação da dominação eclesiástica sobre a vida de modo geral, quanto a substituição de sua forma vigente por uma outra.

Não um excesso, mas uma insuficiência de dominação eclesiástico-religiosa da vida era justamente o que aqueles reformadores, que surgiram nos países economicamente mais desenvolvidos, acharam de criticar.

Entre os bacharelandos católicos a porcentagem daqueles que saem dos estabelecimentos modernos, especialmente destinados e orientados a preparar para a vida burguesa de negócios, fique uma vez mais notavelmente muito atrás da dos protestantes, e que a formação oferecida pelos Gymnasien humanísticos tenha a preferência dos católicos — esse é um fenômeno que não fica explicado pela diferença de fortunas, mas, pelo contrário, é a ele que se deve recorrer para explicar, por sua vez, o reduzido interesse dos católicos pela aquisição capitalista.

Nesses casos, a relação de causalidade repousa sem dúvida no fato de que a peculiaridade espiritual inculcada pela educação, e aqui vale dizer, a direção conferida à educação pela atmosfera religiosa da região de origem e da casa paterna, determinou a escolha da profissão e o subsequente destino profissional.

A menor participação dos católicos na moderna vida de negócios na Alemanha contraria a averiguação a saber: minorias nacionais ou religiosas, ao se contraporem como “dominadas” a um outro grupo visto como “dominante”, tendem a ser fortemente impelidas para os trilhos da atividade aquisitiva; seus membros mais bem-dotados buscam satisfazer aí uma ambição que no plano do serviço público não encontra nenhuma valorização.


Os protestantes, seja como camada dominante ou dominada, seja como maioria ou minoria, mostraram uma inclinação específica para o racionalismo econômico que não pôde e não pode ser igualmente observada entre os católicos.

A razão desse comportamento distinto deve pois ser procurada principalmente na peculiaridade intrínseca e duradoura de cada confissão religiosa.

Também um escritor moderno houve por bem formular o contraste que aparece no comportamento das duas confissões religiosas em face da vida econômica nos seguintes termos: “O católico (...) é mais sossegado; dotado de menor impulso aquisitivo, prefere um traçado de vida o mais possível seguro, mesmo que com rendimentos menores, a uma vida arriscada e agitada que eventualmente lhe trouxesse honras e riquezas. Diz por gracejo a voz do povo: ‘bem comer ou bem dormir, há que escolher’. No presente caso, o protestante prefere comer bem, enquanto o católico quer dormir sossegado”.

Com noções tão vagas como o (pretenso!) “estranhamento do mundo” do catolicismo, a (pretensa!) “alegria com o mundo” de cunho materialista do protestantismo não se vai muito longe, porquanto nessa generalidade elas estão longe de exatas, quer para a atualidade, quer ao menos para o passado.

O calvinismo, em comparação com outras confissões, parece que favoreceu francamente o desenvolvimento do espírito capitalista.

O “espírito de trabalho”, de “progresso” ou como se queira chamá-lo, cujo despertar somos tentados a atribuir ao protestantismo, não pode ser entendido, como hoje sói acontecer, [como se fosse “alegria com o mundo” ou de qualquer outro modo] em sentido “iluminista”. O antigo protestantismo de Lutero, Calvino, Knox, Voët, ligava pouquíssimo para o que hoje se chama “progresso”. Era inimigo declarado de aspectos inteiros da vida moderna, dos quais, atualmente, já não podem prescindir os seguidores mais extremados dessas confissões. Se é para encontrar um parentesco íntimo entre [determinadas manifestações d’]o antigo espírito protestante e a cultura capitalista moderna, não é em sua (pretensa) “alegria com o mundo” mais ou menos materialista ou em todo caso antiascética que devemos procurá-lo, mas sim, queiramos ou não, em seus traços puramente religiosos.

A missão há de ser, então, a de formular o que aqui vislumbramos assim, sem nitidez. Mas para chegar a tanto teremos que necessariamente abandonar o terreno das vagas representações gerais com que operamos até aqui e tentar penetrar a peculiaridade característica e as diferenças desses vastos mundos de pensamento religioso que se oferecem a nós, historicamente, nas diversas manifestações da religião cristã.

2- O “espírito” do capitalismo


“Lembra-te que tempo é dinheiro.”
“Lembra-te que crédito é dinheiro.”
“Lembra-te que o dinheiro é procriador por natureza e fértil.”
“Lembra-te que — como diz o ditado — um bom pagador é senhor da bolsa alheia.”
“Nada contribui mais para um jovem subir na vida do que pontualidade e retidão em todos os seus negócios.”
“As pancadas de teu martelo que teu credor escuta às cinco da manhã ou às oito da noite o deixam seis meses sossegado; mas se te vê à mesa de bilhar ou escuta tua voz numa taberna quando devias estar a trabalhar, no dia seguinte vai reclamar-te o reembolso e exigir seu dinheiro antes que o tenhas à disposição, duma vez só.”
 “Mantém uma contabilidade exata de tuas despesas e receitas.”

É Benjamin Franklin que nessas sentenças nos faz um sermão.

Salta à vista como traço próprio dessa “filosofia da avareza” [o ideal do homem honrado digno de crédito e, sobretudo,] a ideia do dever que tem o indivíduo de se interessar pelo aumento de suas posses como um fim em si mesmo.

Aqui não se prega simplesmente uma técnica de vida, mas uma “ética” peculiar cuja violação é tratada como uma espécie de falta com o dever: isso, antes de tudo, é a essência da coisa. O que se ensina aqui não é apenas “perspicácia nos negócios” mas é um ethos que se expressa, e é precisamente nesta qualidade que ele nos interessa.

No fundo, todas as advertências morais de Franklin são de cunho utilitário: a honestidade é útil porque traz crédito, e o mesmo se diga da pontualidade, da presteza, da frugalidade também, e é por isso que são virtudes: donde se conclui, por exemplo, entre outras coisas, que se a aparência de honestidade faz o mesmo serviço, é o quanto basta, e um excesso desnecessário de virtude haveria de parecer, aos olhos de Franklin, um desperdício improdutivo condenável.

Essas, como todas as virtudes aliás, só são virtudes para Franklin na medida em que forem, in concreto, úteis ao indivíduo, e basta o expediente da simples aparência, desde que preste o mesmo serviço: uma coerência efetivamente inescapável para o utilitarismo estrito.

Acima de tudo, este é o summum bonum dessa “ética”: ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro.

O ser humano em função do ganho como finalidade da vida, não mais o ganho em função do ser humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades materiais.

essa ideia singular da profissão como dever, de uma obrigação que o indivíduo deve sentir, e sente, com respeito ao conteúdo de sua atividade “profissional”, é essa ideia que é característica da “ética social” da cultura capitalista e em certo sentido tem para ela uma significação constitutiva.

Atualmente a ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto indivíduo, se dá como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver. Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado, as normas de ação econômica.

Para que essas modalidades de conduta de vida e concepção de profissão adaptadas à peculiaridade do capitalismo pudessem ter sido “selecionadas”, isto é, tenham podido sobrepujar outras modalidades, primeiro elas tiveram que emergir, evidentemente, e não apenas em indivíduos singulares isolados, mas sim como um modo de ver portado por grupos de pessoas. Portanto, é essa emergência de um modo de ver que se trata propriamente de explicar. Só alhures teremos ocasião de tratar no pormenor daquela concepção do materialismo histórico ingênuo segundo a qual “ideias”como essa são geradas como “reflexo” ou “superestrutura” de situações econômicas.

A [disseminada preponderância da] absoluta falta de escrúpulos na afirmação do interesse pessoal no ganho pecuniário foi justamente uma característica específica daqueles países cujo deslanche capitalista-burguês se mantivera “em atraso”. Nesses países, haja vista o caso da Itália em contraste com a Alemanha, todo fabricante sabe que a falta de coscienziosità dos trabalhadores36 foi e continua a ser em certa medida um dos principais obstáculos ao seu desenvolvimento capitalista.

É isso o que importa — o “espírito” capitalista [especificamente moderno] como fenômeno de massa.

O absoluto e consciente desregramento da ânsia de ganhar andou de braços dados muitas vezes com o mais estrito apego aos laços tradicionais.

O adversário com o qual teve de lutar o “espírito” do capitalismo foi em primeiro lugar aquela espécie de sensibilidade e de comportamento que se pode chamar de tradicionalismo.

O homem não se perguntava: quanto posso ganhar por dia se render o máximo no trabalho? e sim: quanto devo trabalhar para ganhar a mesma quantia — 2,50 marcos — que recebi até agora e que cobre as minhas necessidades tradicionais? Eis um exemplo justamente daquela atitude que deve ser chamada de “tradicionalismo”: o ser humano não quer “por natureza” ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, mas simplesmente viver, viver do modo como está habituado a viver e ganhar o necessário para tanto.

Se faz indispensável uma disposição de executar o trabalho como se fosse um fim absoluto em si mesmo — como “vocação”. Mas tal disposição não está dada na natureza. E tampouco pode ser suscitada diretamente, seja por salários altos seja por salários baixos, só podendo ser o produto de um longo processo educativo.

É certo que a forma “capitalista” de uma economia e o espírito com o qual é conduzida em geral guardam entre si uma relação de “adequação”, mas essa dependência mútua não constitui uma “lei”.

Mas, em si, podem ambas muito bem ocorrer separadamente. Benjamin Franklin estava repleto de “espírito capitalista” numa época em que sua tipografia formalmente não se distinguia em nada de uma oficina artesanal qualquer.

Para saber quais as forças motrizes da expansão do capitalismo [moderno] não se precisa pôr em primeiro lugar a questão da origem das reservas monetárias valorizáveis como capital, e sim [antes de mais nada] a questão do desenvolvimento do espírito capitalista. Por toda parte onde emerge e se efetiva, ele cria para si as provisões monetárias como meios de sua efetivação, não o contrário.

Uma onda de desconfiança, de ódio por vezes, sobretudo de indignação moral, levanta-se repetidamente contra o primeiro inovador, muitas vezes — conheço muitos casos parecidos — forma-se uma verdadeira lenda para falar de sombras misteriosas em sua vida pregressa. Dificilmente alguém se permite reconhecer com suficiente imparcialidade que só uma extraordinária firmeza de caráter é capaz de resguardar um desses empresários “novo estilo” da perda do sóbrio domínio de si e de um naufrágio tanto moral como econômico; e que, juntamente com clarividência e capacidade de ação, são sobretudo qualidades “éticas” bem definidas e marcantes que, no incutir tais inovações, lhe possibilitam angariar a confiança desde logo indispensável dos clientes e dos operários e lhe dão energia para superar incontáveis resistências, mas, acima de tudo, para assumir o trabalho infinitamente mais intenso que agora é exigido do empresário e que é incompatível com um fácil gozo da vida — qualidades éticas, todavia, de um tipo especificamente diverso das que eram adequadas ao tradicionalismo de outrora.

Se alguém lhes perguntasse sobre o “sentido” dessa caçada sem descanso, que jamais lhes permite se satisfazerem com o que têm, o que a faz por isso mesmo parecer tão sem sentido em meio a uma vida puramente orientada para este mundo, quem sabe então responderiam, se é que têm uma resposta: “preocupação com os filhos e netos”, mas com mais frequência e mais precisão responderão simplesmente que os negócios e o trabalho constante tornaram-se “indispensáveis à vida”.

Esta última é de fato a única motivação pertinente, e ela expressa ao mesmo tempo [do ponto de vista da felicidade pessoal] o quanto há de [tão] irracional numa conduta de vida em que o ser humano existe para o seu negócio e não o contrário. Claro que a sensação de poder e o prestígio propiciados pelo simples fato de possuir desempenham aí seu papel: lá onde a fantasia de todo um povo foi vergada na direção de grandezas puramente quantitativas, como nos Estados Unidos, esse romantismo dos números exerce irresistível encantamento.

O “tipo ideal” do empresário capitalista,49 tal como representado entre nós alemães haja vista alguns exemplos eminentes, não tem nenhum parentesco com esses ricaços de aparência mais óbvia ou refinada, tanto faz.

Não é raro, mas bastante frequente, encontrar nele uma dose de fria modéstia que é substancialmente mais sincera do que aquela reserva que Benjamin Franklin soube tão bem aconselhar. De sua riqueza “nada tem” para si mesmo, a não ser a irracional sensação de “cumprimento do dever profissional”.

É precisamente isso que, ao homem pré-capitalista, parece tão inconcebível e enigmático, tão sórdido e desprezível.

Mal carece de prova o fato de que aquela concepção de ganhar dinheiro como um fim em si mesmo e um dever do ser humano, como “vocação”, repugnava à sensibilidade moral de épocas inteiras.

A doutrina dominante repudiava o “espírito” do lucro capitalista ou pelo menos não conseguia valorá-lo como eticamente positivo.

Seu trabalho na vida era considerado, quando muito, algo de moralmente indiferente, tolerado, mas ainda assim, já pelo constante perigo de colidir com a proibição da usura pela Igreja, algo de inconveniente para a bem-aventurança da alma.

Ora, esse processo de racionalização no plano da técnica e da economia sem dúvida condiciona também uma parcela importante dos “ideais de vida” da moderna sociedade burguesa: o trabalho com o objetivo de dar forma racional ao provimento dos bens materiais necessários à humanidade é também, não há dúvida, um dos sonhos dos representantes do “espírito capitalista”, uma das balizas orientadoras de seu trabalho na vida.


O “racionalismo” é um conceito histórico que encerra um mundo de contradições, e teremos ocasião de investigar de que espírito nasceu essa forma concreta de pensamento e de vida “racionais” da qual resultaram a ideia de “vocação profissional” e aquela dedicação de si ao trabalho profissional — tão irracional, como vimos, do ângulo dos interesses pessoais puramente eudemonistas —, que foi e continua a ser um dos elementos mais característicos de nossa cultura capitalista. A nós, o que interessa aqui é exatamente a origem desse elemento irracional que habita nesse como em todo conceito de “vocação”.

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