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3.7.17

DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Notas do subsolo. Rio de Janeiro: L&PM, 2008.

Parte I – O Subsolo

Antes eu trabalhava no serviço público.

Fui um funcionário cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso.

Eu menti antes, quando disse que era um funcionário cruel. Menti de raiva.

Raiva como característica da pessoa frustrada, deslocada, que passa a vida inteira desempenhando funções que preferia não estar desempenhando. Relacionar com Marx.

Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado.

Por que motivo, nos exatos minutos em que eu era mais capaz de perceber todas as sutilezas “de tudo o que é belo e sublime”[3], como se costumava dizer aqui numa certa época, como que propositalmente eu não as percebia e cometia atos tão indecorosos, atos tais que... bem, resumindo, atos que talvez todos pratiquem, mas que, como que de propósito, aconteciam comigo exatamente no momento em que eu mais tinha consciência de que não se deve absolutamente praticá-los? Quanto mais consciência eu tinha do bem e de todo esse “belo e sublime”, mais afundava no meu lodo e mais capaz me tornava de atolar-me nele completamente. Mas a característica mais importante era que parecia que não era por acaso que isso acontecia comigo, que era para ser assim mesmo. Como se isso fosse o meu estado mais normal e de maneira nenhuma uma doença ou avaria, o que, finalmente, tirou-me a vontade de lutar contra esse defeito.

Por que ele agia de uma maneira diferente daqui gostaria de agir?
Relacionar com Durkheim e a moral que se impõe.

Para eles, o muro não significa desvio, como, por exemplo, para nós, seres pensantes e, conseqüentemente, inertes; não é um pretexto para voltar atrás, pretexto em que pessoas como nós geralmente não acreditam, mas que sempre ficam muito felizes quando o encontram. Não, é com toda sinceridade que eles se dão por vencidos. O muro possui para eles algo que acalma, que soluciona a situação do ponto de vista moral, e é definitivo.

O muro aqui pode ser entendido como lei ou como dogma que para os pensantes pode ser um empecilho, mas que são um alívio para os medíocres.

Mas é precisamente nesse frio e asqueroso estado de semidesespero e semicrença, nesse consciente e angustiado sepultamento em vida de si mesmo no subsolo durante quarenta anos, nessa falta de saída de sua situação, que ele mesmo se empenhara em criar e que é, contudo, duvidosa, em todo esse veneno de desejos não satisfeitos que ele engoliu.

Desejos não satisfeitos: perda da das rédeas sobre a própria vida.

Esses senhores, diante da impossibilidade eles imediatamente ficam resignados. A impossibilidade é o mesmo que um muro de pedra? Mas que tipo de muro de pedra? Bem, evidentemente, são as leis da natureza, as conclusões das ciências naturais, a matemática. Se alguém lhe prova, por exemplo, que você descende do macaco, não adianta fazer caretas, aceite-o.

Crítica à inquestionabilidade da ciência.

Que tenho a ver com as leis da natureza e com a aritmética, se essas leis e dois e dois são quatro, por alguma razão, não me agradam? Evidentemente, não quebrarei esse muro com a testa, se realmente não tiver forças para isso, mas nem assim vou resignar-me somente porque encontrei um muro e não tive forças para rompê-lo.

Ó, cúmulo do absurdo! Muito melhor é compreender tudo, perceber tudo, todas as impossibilidades e muros de pedra; não se resignar diante de nenhuma dessas

É a pura verdade. Observem-se melhor, senhores, e verão que é assim. Eu fantasiava peripécias e criava uma vida para mim, ao menos para viver, de alguma forma. Quantas vezes eu ficava ofendido, sem nenhum motivo real, simplesmente porque queria?

Na ausência de uma vida real, vivia uma vida inventada.

E tudo isso por tédio, senhores, tudo por tédio; fui esmagado pela inércia. Pois o produto direto, imediato e legítimo da consciência é a inércia, isto é, o ficar-sentado-de-braços-cruzados conscientemente. Já mencionei isso antes. Repito, repito insistentemente: todos os indivíduos e homens de ação diretos são ativos precisamente porque são obtusos e limitados. Como isso se explica? Da seguinte maneira: em conseqüência de sua tacanhez, tomam os motivos mais próximos e secundários como se fossem os motivos originais e, assim, eles se convencem mais rápida e facilmente do que as outras pessoas de que encontraram um fundamento irrefutável para a sua causa, e então ficam tranqüilos. Isso é o mais importante. Pois, para se começar a agir, é preciso que antes se esteja completamente calmo e totalmente livre de dúvidas.

A minha maldade, novamente em conseqüência dessas malditas leis da consciência, está sujeita à decomposição química. Quando você olha, o objeto já volatilizou, os motivos evaporaram, é impossível encontrar o culpado, a ofensa deixa de ser ofensa e passa a ser uma fatalidade, algo como uma dor de dente, em que não há culpados.

Ah, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria! E me respeitaria precisamente porque teria a capacidade de possuir ao menos a preguiça; pelo menos eu teria uma característica quase positiva, que eu mesmo teria a certeza de possuir. Pergunta: quem é ele? Resposta: um preguiçoso. Seria mais do que agradável ouvir tal coisa a meu respeito. Mostraria que fui definido positivamente, que há o que dizer sobre mim. “Um preguiçoso!” – isto é de fato um título, uma função, é uma carreira, senhores. Não brinquem com isso, é a pura verdade. Eu seria, então, por direito, membro do clube mais importante, e minha única ocupação seria passar todo o tempo me respeitando.

Crítica à ética do trabalho.

Em primeiro lugar, quando foi que, no decorrer de milênios, o homem agiu movido apenas pelos próprios interesses? Que fazer com os milhões de fatos que demonstram que conscientemente, isto é, compreendendo perfeitamente suas verdadeiras vantagens, pessoas deixaram-nas de lado e lançaram-se por outro caminho, ao acaso, arriscando-se, sem que ninguém ou nada as obrigasse a isso, como se simplesmente não quisessem exatamente o caminho que lhes fora indicado e teimosa e voluntariosamente abriram outro, mais difícil, absurdo, tateando no escuro quase às cegas? Significa, pois, que para elas essa teimosia e esse voluntarismo eram de fato mais agradáveis do que qualquer vantagem pessoal...

Critica a objetividade e a racionalidade.

Pois os senhores, ao que eu saiba, compuseram toda a sua lista de vantagens humanas fazendo uma média de valores estatísticos e de fórmulas da ciência econômica. De acordo com as suas conclusões, são elas o bem-estar, a riqueza, a liberdade, a tranqüilidade, e assim por diante. De modo que, por exemplo, o homem que clara e deliberadamente rejeitasse toda essa lista seria, na sua opinião, e na minha também, é claro, um obscurantista ou um ser completamente louco, não é isso?

Eu, por exemplo, tenho um amigo... Mas vejam só! Ele é amigo dos senhores também; e de quem, de quem ele não é amigo?! Ao se preparar para realizar uma ação, esse senhor começará por lhes explicar, de maneira clara e pomposa, como precisamente ele deve agir para estar de acordo com as leis da razão e da verdade. Os senhores estão convencidos de que, então, o homem deixará voluntariamente de errar, e a contragosto, por assim dizer, não irá querer opor sua vontade aos seus interesses normais. E mais: nesse tempo, dizem os senhores, a própria ciência vai ensinar ao homem (embora isso já seja um luxo, na minha opinião) que ele, na verdade, não possui nem vontade, nem caprichos, que, por sinal, nunca os teve, e que ele mesmo não passa de alguma coisa parecida com uma tecla de piano ou um pedal de órgão.

O homem que se encaixa numa ordem de valores pré-estabelecidos. O homem que é uma peça numa máquina.

Crítica ao homem sem desejo pessoal, sem vontade própria, totalmente submisso à moral estabelecida

E tudo isso por um motivo insignificante que não valeria a pena mencionar: precisamente pelo fato de que o homem, invariavelmente e em todo lugar, quem quer que ele seja, sempre gostou de fazer o que quis, e não como mandam a razão e o interesse próprio; ele, inclusive, pode querer algo contra seus próprios interesses, e às vezes até deve indubitavelmente querê-lo (isto já é idéia minha). Sua vontade livre, um capricho seu, mesmo que seja o capricho mais estranho, uma fantasia sua, exacerbada às vezes até a loucura – eis a vantagem que é omitida, a vantagem mais vantajosa, que não se submete a nenhuma classificação e que manda para o diabo constantemente todos os sistemas e teorias. E de onde esses sabichões tiraram que o homem necessita não sei de que vontade normal, virtuosa?

O que o homem precisa é somente de uma vontade independente, custe ela o que custar e não importa aonde possa conduzir.

Nesse tempo – isso tudo os senhores é que dizem –, surgirão novas relações econômicas, que serão também completamente calculadas, e com precisão matemática, de modo que, num piscar de olhos, todo tipo de questões deixarão de existir, precisamente porque alguém já terá encontrado todo tipo de respostas para elas.

Na medida em que se pauta a vida social pelos valores da ciência e se sabe que a ciência evolui diariamente, mudando seus conceitos, a volatilidade dos valores é imensa, não permite a consolidação de uma moral permanente.

E então, senhores, que tal dar um pontapé em todo esse bom senso e mandar esses logaritmos para o diabo para que possamos novamente viver segundo a nossa vontade idiota?

Quem vai querer ter vontade de acordo com uma tabela? E ainda: no mesmo instante o homem se transformará num pedal de órgão ou em algo no gênero; porque o que é esse homem sem desejos, sem vontade, sem seu próprio querer, senão um pedal de órgão?

O homem visto como coisa, como ferramenta, como um instrumento.

Porque se, por exemplo, um dia me provarem com cálculos que se eu fiz um gesto obsceno com o dedo para alguém isso se deu precisamente porque não poderia deixar de fazê-lo, e porque era exatamente aquele dedo que eu deveria mostrar, então o que restará de livre em mim, especialmente se sou uma pessoa instruída e com um curso completo de ciência em algum lugar? Pois nesse caso eu vou poder calcular antecipadamente toda a minha vida futura por um período de trinta anos; em síntese, se isso for implantado, não nos restará nada a fazer; de todo modo, teremos de aceitar.

Crítica da moral enquanto ferramenta de censura que diminui a liberdade de ação do homem.

Vejam os senhores: a razão é uma coisa boa, sem dúvida, mas razão é apenas razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; já a vontade, esta é a manifestação da vida como um todo, ou melhor, de toda a vida humana, aí incluindo-se a razão e todas as formas de se coçar. E, mesmo que a nossa vida pareça às vezes bem ruinzinha do ponto de vista acima, ela é vida, apesar de tudo, e não apenas a extração de uma raiz quadrada.

Que sabe a razão? Ela sabe apenas aquilo que conseguiu conhecer (outras coisas, provavelmente, nunca saberá; isso pode não consolar, mas por que não dizê-lo?); já a natureza humana, esta age como um todo, com tudo o que possui, seja consciente, seja inconsciente – e, mesmo mentindo, está vivendo.

Toda a questão humana, creio, resume-se, na realidade, em o homem provar constantemente para si mesmo que ele é um homem, e não uma tecla! Ainda que arriscando sua pele, ele tentará prová-lo; ainda que se comporte como um troglodita, ele tentará prová-lo.

Tenho, senhores, algumas questões que me atormentam; resolvam-nas para mim. Por exemplo, os senhores querem fazer com que o homem desaprenda hábitos antigos e desejam corrigir sua vontade, de acordo com as exigências da ciência e do bom senso. Mas como os senhores sabem que não só é possível como também necessário mudar assim o homem? De onde os senhores tiraram essa conclusão de que é tão necessário corrigir a vontade humana?

Por que os senhores têm tanta certeza de que realmente é sempre vantajoso para o homem e constitui uma lei para toda a humanidade não contradizer as vantagens verdadeiras, normais, aquelas garantidas por argumentos da razão e da aritmética? Pois, por enquanto, isso é apenas uma suposição dos senhores.

Mas o homem é um ser inconstante e pouco honesto e, talvez, à semelhança do jogador de xadrez, goste apenas do processo de procurar atingir um objetivo, e não do objetivo em si. E quem sabe? Não se pode garantir, mas talvez todo o objetivo a que o homem se dirige na Terra se resuma a esse processo constante de buscar conquistar ou, em outras palavras, à própria vida, e não ao objetivo exatamente, o qual, evidentemente, não deve passar de dois e dois são quatro, ou seja, uma fórmula, e dois e dois são quatro já não é vida, senhores, mas o começo da morte.

Ele ama o processo de conseguir, mas atingir mesmo, nem tanto, e isso, claro está, é terrivelmente engraçado.

E por que os senhores estão assim tão firme e solenemente convencidos de que apenas o que é normal e positivo, ou seja, o bem-estar, é vantajoso para o homem?

Quanto à minha opinião pessoal, penso que amar apenas o bem-estar é, de certo modo, até indecente. Seja isso bom ou não, o fato é que, às vezes, quebrar alguma coisa é também muito agradável.

Estou defendendo... o meu capricho, e que ele me seja garantido, quando necessário.

Conclusão final, senhores: é melhor não fazer nada! É melhor a inércia consciente! Pois, então, viva !

É preferível a inércia consciente do que se submeter a um conjunto de desejos que não são os seus.

Parte II - A propósito da neve úmida

Todos me abandonaram e fiquei ali esmagado e reduzido a nada. “Ó Senhor, será para mim esta sociedade?”, pensava eu.

Trudoliúbov levantou a taça e os outros o acompanharam, menos eu. – À sua saúde e boa viagem! – exclamou Trudoliúbov para Zverkov. – Aos nossos velhos tempos, senhores, e ao nosso futuro, hurra! Todos beberam e rodearam Zverkov para beijá-lo. Não me movi; a taça cheia continuava intacta na minha frente.

Incapacidade de se submeter ao teatro das convenções sociais.

Eu também não resisti e solucei de uma maneira como nunca havia soluçado antes... – Não me permitem... Eu não posso ser... bom!

Durante o trabalho na repartição, procurava inclusive não olhar para ninguém e percebia nitidamente que meus colegas não só me consideravam excêntrico como também – assim me parecia constantemente – olhavam-me com uma certa repulsa.

Sensação de não pertencimento.

Entregava-me com amor à medianidade geral e com toda a alma temia qualquer sinal de excentricidade em mim. Mas como eu poderia ter resistido? Eu era evoluído de uma maneira doentia, como deve ser o homem evoluído do nosso tempo. Já eles, eram todos obtusos e parecidos uns com os outros, como um rebanho de carneiros.

Homogeinização da sociedade

Eu saía para a libertinagem à noite, secretamente, com medo e com sensação de sujeira, sentindo uma vergonha que não me abandonava nem nos instantes mais repugnantes, como uma maldição. Já então eu trazia na alma o meu subsolo. Sentia um medo terrível de ser visto e reconhecido

Subsolo como metáfora para os desejos inconfessáveis do autor, desejos que talvez não fossem bem vistos pela moral da sociedade.

Só Deus sabe o que eu não daria naquele momento por uma briga de verdade, mais correta, mais decente, mais, por assim dizer, literária! Trataram-me como se eu fosse uma mosca.

Nesse caso, a briga serve como uma forma de se sentir vivo, de ser notado. Ser ignorado é que é a pior parte. O problema da insignificância.

Uma sensação insistente e concreta, de que eu era uma mosca no meio de toda aquela gente, uma reles mosca desnecessária – mais inteligente, mais culta e mais nobre do que todos eles, evidentemente –, porém, uma mosca que cede sempre diante de todos, que todos humilham e ofendem.

Quando se tratava de alguém como eu, ou mesmo um pouco melhor, ele simplesmente o esmagava; caminhava diretamente para essa pessoa, como se na sua frente houvesse um espaço vazio, e nunca cedia passagem.

Torturava-me ver que nem mesmo na rua eu conseguia ser igual a ele. “Por que você é o primeiro a se desviar?”, implicava eu comigo mesmo, numa histeria furiosa, quando me acontecia acordar antes das três da manhã. “Por que tem de ser você e não ele? Pois não existe lei para isso, isso não está escrito em nenhum lugar. Então, que haja igualdade, como acontece geralmente quando pessoas educadas se encontram: ele cede até a metade, você também cede até a metade, e os dois passam, respeitando-se mutuamente”.

Mas confesso que, depois de inúmeras tentativas, quase entrei em desespero: simplesmente não havia meio de darmos o encontrão! Com todos os preparativos que eu fazia, com toda a determinação que colocava na coisa, parecia que logo-logo haveríamos de nos esbarrar – mas, novamente, eu cedia o caminho e ele passava sem me notar.

Uma forma de agir intuitiva que se impõe ao personagem, mesmo contra sua vontade racional.

De repente, a três passos do meu inimigo, repentinamente me decidi, fechei os olhos e – nós nos chocamos fortemente, ombro contra ombro! Eu não cedi nem uma polegada e passei por ele como um igual! Ele nem ao menos se virou e fingiu que não notara, mas foi somente fingimento, estou certo disso. Até hoje tenho certeza disso! Claro está que eu sofri mais, pois ele era mais forte, mas não era isso que importava. O importante foi que consegui o meu objetivo, mantive a minha dignidade, não cedi nem um passo e, à vista de todos, me comportei com ele como uma pessoa do mesmo nível social.

Mais tarde, ouvi narrativas sobre seus sucessos na caserna e como tenente, e também sobre suas farras. Depois ouvi outros boatos sobre seus avanços na carreira. Ele já não me cumprimentava na rua e eu desconfiava de que ele tinha medo de se comprometer se mostrasse conhecer alguém tão insignificante como eu.

Aos dezesseis anos, eu os observava carrancudo e me espantava com eles; já naquela época eu ficava admirado com a mesquinhez dos seus pensamentos, com as coisas idiotas com que se ocupavam, com seus jogos, suas conversas. Havia tantas coisas importantes que eles não entendiam, tantos assuntos empolgantes e apaixonantes que não despertavam o interesse deles, que sem querer eu comecei a me achar superior a eles.

Eles achavam que ser inteligente era obter um cargo elevado;

Vou ficar sentado e beber, porque para mim os senhores não passam de fantoches, fantoches que não existem.

Desprezo por uma sociedade sem valores, ou melhor, uma sociedade cujos valores (pré-fabricados) o protagonista despreza, tem asco.

– Bem, o senhor... é que o senhor fala como se estivesse lendo um livro – disse ela, e uma nota zombeteira pareceu soar novamente em sua voz.

Uma sociedade em que ser culto não é valorizado, pelo contrário, parece ridículo .

O camponês mais desgraçado, quando faz um contrato de trabalho, não se escraviza por inteiro e, além disso, sabe que aquilo tem um prazo. E você, qual é o seu prazo? Reflita apenas: o que você está dando aqui, o que está entregando? Sua alma, a alma que não lhe pertence, você a está entregando junto com o seu corpo! Seu amor, você o entrega a qualquer bêbado para que ele o profane.

Comparação entre prostituição e o trabalho de um camponês

Eu sabia que meu discurso era pesado, artificial, livresco mesmo. Em suma: de outra forma eu não sabia me expressar, a não ser “como num livro”.

O personagem se sente tão estrangeiro nessa sociedade que até o seu modo de falar parece um outro idioma, o idioma livresco.

Em primeiro lugar, eu já não tinha capacidade de amar, porque, repito, amar para mim significava tiranizar e dominar moralmente.

Agora, às vezes penso que o amor, na realidade, consiste no direito que o objeto do amor voluntariamente concede de ser tiranizado.

“Tranqüilidade” era o que eu queria; queria ficar sozinho no subsolo. A “vida viva” me sufocava tanto, devido à minha falta de costume, que até respirar estava difícil.

Todos nos desacostumamos da vida, uns mais, outros menos, e nos desacostumamos ao ponto de sentirmos às vezes uma certa repugnância pela verdadeira “vida viva”

Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos – não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o que amar e o que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é difícil ser gente – gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um demérito e nos esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos.

Estraguei minha vida apodrecendo moralmente num canto, com as deficiências do ambiente, desabituando-me da vida e com meu ódio vaidoso no subsol

Pois chegamos ao ponto de quase achar que a verdadeira “vida viva” é um trabalho, quase um emprego, e todos nós no íntimo pensamos que nos livros é melhor.

Pois bem, façam uma experiência, dêem-nos, por exemplo, mais independência, desamarrem as mãos de qualquer um de nós, ampliem nossa esfera de ação, relaxem a tutela e nós... eu lhes asseguro: nós imediatamente pediremos a volta da tutela.

O homem precisa de regras, não consegue viver sem elas.

E no que me diz respeito, eu apenas levei às últimas conseqüências na minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom senso, consolando-se e enganando a si próprios com isso. De modo que talvez eu esteja mais “vivo” que os senhores.

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