Páginas

26.10.17

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São. Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007

Introdução

Contra a ideologia carismática segundo a qual os gostos, em matéria de cultura legítima, são considerados um dom da natureza, a observação científica mostra que as necessidades culturais são o produto da educação: a pesquisa estabelece que todas as práticas culturais (freqüência dos museus, concertos, exposições, leituras, etc.) e as preferências em matéria de literatura, pintura ou música, estão estreitamente associadas ao nível de instrução (avaliado pelo diploma escolar ou pelo número de anos de estudo) e, secundariamente, à origem social.

À hierarquia socialmente reconhecida das artes - e, no interior de cada uma delas -, dos gêneros, escolas ou épocas, corresponde a hierarquia social dos consumidores. Eis o que predispõe os gostos a funcionar como marcadores privilegiados da "classe".

--- Page 9 ---

A obra de arte só adquire sentido e só tem interesse para quem é dotado do código segundo o qual ela é codificada.

A aquisição da cultura legítima pela familiarização insensível no âmago da família tende a favorecer, de fato, uma experiência encantada da cultura que implica o esquecimento da aquisição e a ignorância dos instrumentos da apropriação.

O "olho" é um produto da história reproduzido pela educação.

--- Page 10 ---

A percepção estética é necessariamente histórica: como acontece com o pintor chamado "naif" que, estando fora do campo e de suas tradições específicas, permanece exterior à história própria da arte considerada, assim também o acesso do espectador "naif" a uma percepção específica de obras de arte sem sentido só pode ocorrer por referência à história específica de uma tradição artística.

--- Page 12 ---

Se é demasiado evidente que, pela arte, a disposição estética recebe seu terreno por excelência, ocorre que, em qualquer campo da prática, é possível se afirmar a intenção de submeter as necessidades e as pulsões primárias ao requinte e à sublimação.

Nada determina mais a classe e é mais distintivo, mais distinto, que a capacidade de constituir, esteticamente, objetos quaisquer ou, até mesmo, "vulgares" (por serem apropriados, sobretudo, para fins estéticos, pelo "vulgar") ou a aptidão para aplicar os princípios de uma estética "pura" nas escolhas mais comuns da existência comum - por exemplo, em matéria de cardápio, vestuário ou decoração da casa - por uma completa inversão da disposição popular que anexa a estética à ética.

O gosto classifica aquele que procede à classificação: os sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas.

Oposições de estrutura semelhante às que se observam em matéria de consumo cultural encontram-se, também, em matéria de consumo alimentar: a antítese entre a quantidade e a qualidade, a grande comilança e os quitutes, a substância e a forma.

Gosto de necessidade - que, por sua vez, encaminha para os alimentos, a um só tempo, mais nutritivos e mais econômicos - e o gosto de liberdade - ou de luxo - que, por oposição à comezaina popular, tende a deslocar a ênfase da matéria para a maneira (de apresentar, de servir, de comer, etc.) por um expediente de estilização que exige à forma e às formas que operem uma denegação da função.

--- Page 13 ---

Esta reintegração bárbara do consumo estético no universo do consumo comum revoga a oposição - que, desde Kant, se encontra na origem da estética erudita - entre o "gosto dos sentidos" e o "gosto da reflexão"; e, entre o prazer "fácil", prazer sensível reduzido a um prazer dos sentidos, e o prazer "puro" que está predisposto a tornar-se um símbolo de excelência moral e a dimensão da capacidade de sublimação que define o homem verdadeiramente humano. A cultura que é o produto desta divisão mágica tem valor de sagrado.

E o nu? Limito-me a dizer que é breve e exerce reduzido efeito cênico. Não direi que é casto ou inocente porque nada do que é comercial pode receber tal qualificativo. Digamos que não é chocante; no entanto, pode ser criticado, sobretudo, por ter servido de atrativo para o sucesso da peça( ... ). A nudez de Hair carece de dimensão simbólica''.'

--- Page 15 ---

1.       Títulos e ascendência de nobreza cultural

--- Page 16 ---

Tendo por objetivo determinar como a disposição culta e a competência cultural apreendidas através da natureza dos bens consumidos e da maneira de consumi-los variam segundo as categorias de agentes e segundo os terrenos aos quais elas se aplicam, desde os domínios mais legítimos, como a pintura ou a música, até os mais livres, por exemplo, o vestuário, o mobiliário ou o cardápio, estabelece-se dois fatos fundamentais: por um lado, a relação estreita que une as práticas culturais ao capital escolar e, secundariamente, à origem social e, por outro, o fato de que, no caso de capital escolar equivalente, aumenta o peso da origem social no sistema explicativo das práticas ou das preferências quando nos afastamos dos domínios mais legítimos.

--- Page 92 ---

2. O espaço social e suas transformações

Relacionar o gosto elaborado dos objetos mais depurados com o gosto elementar dos sabores alimentares. O duplo sentido do termo "gosto" - que, habitualmente, serve para justificar a ilusão da geração espontânea que tende a produzir esta disposição culta, ao apresentar-se sob as aparências da disposição inata - deve servir, desta vez, para lembrar que o gosto, enquanto "faculdade de julgar valores estéticos de maneira imediata e intuitiva" é indissociável do gosto no sentido de capacidade para discernir os sabores próprios dos alimentos que implica a preferência por alguns deles.

O consumo de bens pressupõe um trabalho de apropriação; ou, mais exatamente, que o consumidor contribui para produzir o produto que ele consome mediante um trabalho de identificação e decifração.

--- Page 93 ---

Envolvidos em suas abstrações, os economistas podem ignorar o que advém aos produtos na relação com os consumidores. Afirmar, por hipótese, como um deles, que os consumidores percebem os mesmos atributos decisivos, o que equivale a supor que os produtos possuem características objetivas é admitir que a percepção estaria associada unicamente às características designadas pelas descrições propostas pelos produtores.

Os objetos, inclusive, os produtos industriais, não são objetivos no sentido atribuído, habitualmente, a esta palavra, ou seja, independentes dos interesses e gostos dos que os apreendem. A tarefa do sociólogo seria, incomparavelmente, muito mais fácil se não tivesse de determinar como a percepção e a apreciação variam segundo as classes.

De fato, basta formular a questão, estranhamente ignorada pelos economistas, sobre as condições econômicas da produção das disposições postuladas pela economia - ou seja, no caso particular, a questão dos determinantes econômicos e sociais dos gostos.

--- Page 94 ---

Condição de classe e condicionamentos sociais

A análise faz desaparecer, em primeiro lugar, a estrutura do estilo de vida característico de um agente ou de uma classe de agentes, ou seja, a unidade que se dissimula sob a diversidade e a multiplicidade do conjunto das práticas realizadas em campos dotados de lógicas diferentes

Trata-se, portanto, de recompor o que foi decomposto, antes de mais nada, a título de verificação, mas também para encontrar, de novo, o que há de verdade na abordagem característica do conhecimento comum.

Para isso, convém retornar ao princípio unificador e gerador das práticas, ou seja, ao habitus de classe, como forma incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ela impõe; portanto, construir a classe objetiva, como conjunto de agentes situados em condições homogêneas de existência, impondo condicionamentos homogêneos e produzindo sistemas de disposições homogêneas, próprias a engendrar práticas semelhantes, além de possuírem um conjunto de propriedades comuns, propriedades objetivadas, às vezes, garantidas juridicamente - por exemplo, a posse de bens ou poderes - ou incorporadas, tais como os habitus de classe - e, em particular, os sistemas de esquemas classificatórios.

--- Page 95 ---

As relações singulares entre uma variável dependente (por exemplo, a opinião política) e variáveis chamadas independentes - tais como sexo, idade e religião ou, até mesmo, nível de instrução, remunerações e profissão - tendem a dissimular o sistema completo das relações que constituem o verdadeiro princípio da força e da forma específicas dos efeitos registrados em determinada correlação particular. A mais independente das variáveis "independentes" esconde uma verdadeira rede de relações estatísticas que estão presentes, subterraneamente, na relação que ela mantém com determinada opinião ou prática.

Convém interrogar-se a respeito de tudo o que, presente na definição real da classe, não é levado em consideração de modo consciente na definição nominal.

--- Page 97 ---

A idade escolar (isto é, a idade para determinado nível escolar) é uma forma transformada do capital cultural herdado e, deste modo, o atraso é uma etapa para a relegação ou eliminação; de maneira mais geral, o capital escolar possuído em determinado momento exprime, entre outras coisas, o nível econômico e social da família de origem.

Do mesmo modo, em qualquer relação entre o capital escolar e determinada prática, apreende-se o efeito das disposições associadas ao sexo que contribuem para determinar a lógica da reconversão do capital herdado em capital escolar, ou seja, mais precisamente, a "escolha" da espécie de capital escolar que será obtida a partir do mesmo capital de origem: de preferência literário, no caso de uma moça, e científico, no caso de um rapaz.

Do mesmo modo, por último, é impossível imputar as variações da prática cultural, segundo o porte da aglomeração de residência, ao efeito próprio da distância puramente espacial e às variações da oferta cultural, antes de ter sido verificado se as diferenças subsistem com a eliminação do efeito das desigualdades em relação ao capital escolar, decorrentes - inclusive, na mesma categoria profissional - da distribuição no espaço geográfico.

Ao proceder à análise isolada de cada variável, como ocorre freqüentemente, corre-se o risco de atribuir a uma das variáveis - por exemplo, sexo ou idade - o que é o efeito do conjunto das variáveis.

--- Page 98 ---

A classe construída

A classe social não é definida por uma propriedade (mesmo que se tratasse da mais determinante, tal como o volume e a estrutura do capital), nem por uma soma de propriedades (sexo, idade, origem social ou étnica - por exemplo, parcela de brancos e de negros, de indígenas e de imigrantes, etc. -, remunerações, nível de instrução, etc.), mas pela estrutura das relações entre todas as propriedades pertinentes que confere seu valor próprio a cada uma delas e aos efeitos que ela exerce sobre as práticas.

A construção, como é o caso deste trabalho, de classes, implica, portanto, levar em consideração de modo consciente - na própria construção destas classes e na interpretação das variações, segundo estas classes, da distribuição das propriedades e das práticas - a rede das características secundárias manipuladas, de maneira mais ou m.enos inconsciente, sempre que é feito apelo a classes construídas com base em um critério único

Não se pode justificar de maneira, a um só tempo, unitária e específica, a infinita diversidade das práticas a não ser mediante a condição de romper com o pensamento linear que se limita a conhecer as estruturas simples de ordem.

Através de cada um dos fatores, exerce-se a eficácia de todos os outros, de modo que a ! . multiplicidade das determinações conduz não à indeterminação, mas à sobredeterminação:

--- Page 99 ---

No seio das diferentes classes sociais, a divisão do trabalho entre os sexos assuma formas completamente diferentes, tanto nas práticas quanto nas representações.

Do mesmo modo, não é por acaso que as profissões de serviço e de cuidados pessoais, serviços médico-sociais, estabelecimentos de cuidados pessoais - antigos, tais como os cabeleireiros; e novos, por exemplo, as esteticistas - e, sobretudo, serviços domésticos que acumulam as duas dimensões da definição tradicional das tarefas femininas, ou seja, o serviço e a casa, são praticamente reservados às mulheres.

Basta pensar em alguns casos-limite-freqüentes, de modo bastante desigual: o da mulher sem profissão; o do artista que vive às expensas da esposa; o do empresário ou quadro da indústria que deve sua posição ao estatuto de genro - para observar que é difícil caracterizar um indivíduo sem fazer intervir todas as propriedades que advêm a cada um dos cônjuges - e não somente às mulheres - por intermédio do outro: um nome (às vezes, a preposição de), bens, remunerações, relações, um estatuto social (cada membro do casal é caracterizado - em graus diferentes, segundo o sexo, a posição social e a distância entre as duas posições -pela posição do cônjuge).

Considerando a lógica da divisão do trabalho entre os sexos que confere às mulheres a precedência em matéria de gosto (enquanto tal precedência é atribuída aos homens em matéria de política), o peso do gosto próprio do homem na escolha da roupa (portanto, o grau em que a roupa exprime esse gosto) depende não só do capital cultural herdado e do capital escolar à sua disposição, mas também do capital escolar e cultural possuído pela esposa.

Classe social e classe de trajetórias

As condições de aquisição das propriedades sincronicamente repertoriadas são evocadas apenas nos casos de discordância entre as condições de aquisição e as condições de utilização, ou seja, quando as práticas engendradas pelo habitus aparecem como mal adaptadas por terem sido ajustadas a um antigo estado das condições objetivas.

--- Page 101 ---

Não é ao acaso que os indivíduos se deslocam no espaço social: por um lado, porque eles estão submetidos às forças que conferem sua estrutura a esse espaço; e, por outro, porque sua inércia própria opõe-se às forças do campo. A determinado volume de capital herdado corresponde um feixe de trajetórias praticamente equiprováveis que levam a posições praticamente equivalentes -trata-se do campo dos possíveis oferecido objetivamente a determinado agente.

Daí, segue-se que a posição e a trajetória individual não são, do ponto de vista estatístico, independentes na medida em que nem todas as posições de chegada são igualmente prováveis para todos os pontos de partida: eis o que implica a existência de uma correlação bastante forte entre as posições sociais e as disposições dos agentes que as ocupam

O envelhecimento social é apenas o lento trabalho de assumir a perda ou, se preferirmos, de desinvestimento - assistido e incentivado do ponto de vista social - que leva os agentes a ajustarem suas aspirações a suas possibilidades objetivas, conduzindo-os assim a desposarem sua condição, a tornarem-se o que são, a contentarem-se com o que têm, além de assumirem a perda de todos os demais possíveis, abandonados, aos poucos, pelo caminho, e de todas as expectativas reconhecidas como irrealizáveis à força de terem permanecido irrealizadas.

A afirmação de que os membros de uma classe que, na origem, dispunham de determinado capital econômico e cultural, estão votados, com determinada probabilidade, a uma trajetória escolar e social que conduz a determinada posição, implica dizer, de fato, que uma fração da classe está destinada a desviar-se em relação à trajetória mais freqüente para a classe no seu todo, empreendendo a trajetória, superior ou inferior, que era a mais provável para os membros de outra classe, e desclassificando-se, assim, pelo alto ou por baixo.

Em oposição aos indivíduos ou grupos em ascensão, plebeus de nascença ou de cultura, os indivíduos ou os grupos em declínio reinventam eternamente o discurso de todas as nobrezas, a fé essencialista na eternidade das naturezas, a celebração do passado e da tradição, além do culto integrista da história e de seus rituais, porque resta-lhes, em relação ao futuro, a expectativa do retorno da antiga ordem pela qual esperam conseguir a restauração de seu ser social.

--- Page 103 ---

Por oposição ao efeito da trajetória individual que, por ser um desvio em relação à trajetória coletiva- cujo sentido pode ser nulo-, é imediatamente visível, o efeito da trajetória coletiva corre o risco de passar desapercebido como tal: quando o efeito de trajetória se exerce sobre o conjunto de uma classe ou de uma fração de classe, corre-se o risco de imputar às propriedades, associadas sincronicamente à classe, determinados efeitos - por exemplo, opiniões políticas ou religiosas - que, na realidade, são o produto das transformações coletivas.

Capital e mercado

A eficiência encontra-se na configuração particular do sistema das propriedades constitutivas da classe construída, definida de maneira totalmente teórica por todos os fatores que operam em todas as áreas da prática, tais como volume e estrutura do capital, definidos pontualmente e em sua evolução (trajetória), sexo, idade, estatuto matrimonial, residência, etc.

A lógica específica do campo, do que está em jogo e da espécie de capital necessário para participar do mesmo, é que comanda as propriedades através das quais se estabelece a relação entre a classe e a prática.

--- Page 104 ---

Sendo capital uma relação social, ou seja, uma energia social que existe e produz seus efeitos apenas no campo em que ela se produz e se reproduz, cada uma das propriedades associadas à classe recebe seu valor e sua eficácia das leis específicas de cada campo.

Assim, explica-se que a relação descoberta pela análise entre a classe e as práticas pareça estabelecer-se, em cada caso, por intermédio de um fator ou de uma combinação particular de fatores, variável segundo o campo.

A configuração singular do sistema dos fatores explicativos que deve ser construída para justificar o estado da distribuição de uma classe particular de bens ou práticas é a forma assumida, neste campo, pelo capital objetivado (propriedades) e incorporado (habitus) que define propriamente falando a classe social e constitui o princípio de produção de práticas distintivas, ou seja, classificadas e classificante

Um espaço com três dimensões

Obedecendo à preocupação de recompor as unidades mais homogêneas do ponto de vista das condições de produção dos habitus, ou seja, no tocante às condições elementares da existência e dos condicionamentos que elas impõem, é possível construir um espaço, cujas três dimensões fundamentais sejam definidas pelo volume e estrutura do capital, assim como pela evolução no tempo dessas duas propriedades - manifestada por sua trajetória passada e seu potencial no espaço social.

As diferenças primárias - aquelas que estabelecem a distinção entre as grandes classes de condições de existência - encontram sua origem no volume global do capital (capital econômico, capital cultural e, também, capital social) como conjunto de recursos e poderes efetivamente utilizáveis: as diferentes classes (e frações de classe) distribuem-se, assim, desde as mais bem providas, a um só tempo, em capital econômico e cultural, até as mais desprovidas nestes dois aspectos (cf. Gráfico 5).

Os membros das profissões liberais que têm altas remunerações e diplomas elevados, oriundos freqüentemente (52,9%) da classe dominante (profissões liberais ou quadros superiores), que recebem e consomem, em grande quantidade, bens materiais e culturais, opõem-se praticamente em todos os aspectos, não só aos empregados de escritório, detentores de poucos diplomas, oriundos, muitas vezes, das classes populares e médias, recebendo e gastando um número reduzido de bens, além de dedicarem uma parte importante de seu tempo à manutenção do carro e aos pequenos consertos domésticos, mas, sobretudo, aos trabalhadores braçais e assalariados agrícolas, dotados das mais baixas remunerações, desprovidos de diplomas e oriundos na sua quase totalidade (à razão de 90,5% para os assalariados agrícolas e de 84,5% para os trabalhadores braçais) das classes populares. 24

Levar em consideração a estrutura do patrimônio é dotar-se dos meios de proceder a divisões mais bem definidas e, ao mesmo tempo, apreender os efeitos específicos da própria estrutura da distribuição entre as diferentes espécies que, por exemplo, pode ser simétrica (como no caso das profissões liberais que juntam um elevado capital cultural a remunerações bastante elevadas) ou dessimétrica (no caso dos professores ou dos empresários em que, para os primeiros, a espécie dominante é o capital cultural, enquanto, para os segundos, é o capital econômico).

Considerando que o volume do capital econômico cresce de maneira contínua, no mesmo momento que decresce o volume do capital cultural, quando se passa dos artistas para os empresários da indústria e do comércio, vê-se que a classe dominante organiza-se segundo uma estrutura em quiasma.

--- Page 108 ---

A estrutura da distribuição do capital econômico é simétrica e inversa da estrutura da distribuição do capital cultural

--- Page 109 ---

As frações mais ricas em capital cultural têm propensão a investir, de preferência, na educação dos filhos e, ao mesmo tempo, nas práticas culturais próprias a manter e aumentar sua raridade específica. Por sua vez, as frações mais ricas em capital econômico relegam os investimentos culturais e educativos em benefício dos investimentos econômicos.

Relativamente providas das duas formas de capital, apesar de sua reduzida integração na vida econômica para aplicar ativamente seu capital nesse campo, as profissões liberais - e, em particular, médicos e advogados - investem na educação dos filhos, mas também, e sobretudo, nos consumos propícios a simbolizar a posse de recursos materiais e culturais que se conformem com as regras da arte burguesa de viver e, por isso mesmo, capazes de garantir um capital social: capital de relações mundanas que podem, se for o caso, fornecer "apoios" úteis; assim como capital de honorabilidade e de respeitabilidade que, muitas vezes, é indispensável para atrair ou assegurar a confiança da alta sociedade e, por conseguinte, de sua clientela, além da possibilidade de servir de moeda de troca, por exemplo, em uma carreira política.

--- Page 110 ---

A mesma estrutura em quiasma observa-se no nível das classes médias em que se vê, também, decrescer o volume do capital cultural, enquanto cresce o volume do capital econômico quando se passa dos professores primários para os empresários médios da indústria e do comércio, quadros médios, técnicos e empregados de escritório que ocupam uma posição intermediária.

--- Page 111 ---

Para uma justificativa mais completa das diferenças de estilos de vida entre as diferentes frações - particularmente, em matéria de cultura -, conviria levar em consideração sua distribuição em um espaço geográfico socialmente hierarquizado. De fato, as possibilidades de que um grupo venha a apropriar-se de uma classe qualquer de bens raros - e que avaliam as expectativas matemáticas de acesso - dependem, por um lado, de suas capacidades de apropriação específica, definidas pelo capital econômico, cultural e social que ele pode implementar para apropriar-se, do ponto de vista material e/ou simbólico, dos bens considerados, ou seja, de sua posição no espaço social e, por outro, da relação entre sua distribuição no espaço geográfico e a distribuição dos bens raros neste espaço (relação que pode ser avaliada em distâncias médias a bens ou equipamentos, ou em tempos de deslocamento - o que faz intervir o acesso a meios de transporte, individuais ou coletivos).

Ou dito em outras palavras, a distância social real de um grupo a determinados bens deve integrar a distância geográfica que, por sua vez, depende da distribuição do grupo no espaço e, mais precisamente, de sua distribuição em relação ao "núcleo dos valores" econômicos e culturais, ou seja, em relação a Paris ou às grandes metrópoles regionais.

É assim que, por exemplo, a distância dos agricultores aos bens de cultura legítima não seria tão imensa se, à distância propriamente cultural que é correlata de seu baixo capital cultural, não viesse juntar-se o afastamento geográfico resultante da dispersão no espaço que caracteriza esta classe.

--- Page 112 ---

A taxa de conversão das diferentes espécies de capital é um dos pretextos fundamentais das lutas entre as diferentes frações de classe, e, em particular, da luta sobre o princípio dominante de dominação - capital econômico, capital cultural ou capital social, sabendo que este último está estreitamente associado à antiguidade na classe por intermédio da notoriedade do nome, assim como da extensão e da qualidade da rede de relações - que, em todos os momentos, estabelece a oposição entre as diferentes frações da classe dominante.

--- Page 113 ---

Uma das dificuldades do discurso sociológico deve-se ao fato de que ele desenrola-se de maneira estritamente linear, ao passo que, para escapar ao simplismo e à falsidade dos apanhados parciais e das intuições unilaterais, conviria poder evocar, em cada um de seus pontos, a totalidade da rede de relações.

Eis a razão pela qual pareceu necessário mostrar - sob a forma de um esquema que tem a propriedade, como afirma Saussure, de poder "oferecer complicações simultâneas em várias dimensões" - o meio de apreender a correspondência entre a estrutura do espaço social, cujas duas dimensões fundamentais correspondem ao volume e à estrutura do capital dos grupos distribuídos nele, e a estrutura do espaço das propriedades simbólicas associadas aos grupos distribuídos nesse espaço.

Para ter uma idéia tão exata quanto possível do modelo teórico proposto, convém imaginar a sobreposição (à semelhança do que se pode fazer com transparências) de três esquemas: o primeiro (aqui, Gráfico 5) apresentaria o espaço das condições sociais tal como é organizado pela distribuição sincrônica e diacrônica do volume e estrutura do capital sob suas diferentes espécies, o segundo (Gráfico 6) mostraria o espaço dos estilos de vida, ou seja, a distribuição das práticas e propriedades que são constitutivas do estilo de vida em que se manifesta cada uma das condições; por último, entre os dois esquemas precedentes, conviria introduzir ainda um terceiro que apresente o espaço teórico do habitus, ou seja, das fórmulas geradoras (por exemplo, para os professores, o ascetismo aristocrático) que se encontram na origem da cada uma das classes de práticas e propriedades.

Entre os limites de tal construção, os mais importantes referem-se às lacunas da estatística que avalia muito melhor os consumos que o capital propriamente dito (em particular, o capital investido na economia).

Não dispondo da pesquisa (talvez, irrealizável na prática) que fornecesse, a propósito da mesma amostra representativa, o conjunto dos indicadores do patrimônio econômico, cultural e social, além de sua evolução, necessários para construir uma representação adequada do espaço social, construiu-se um modelo simplificado deste espaço a partir dos conhecimentos adquiridos no decorrer das pesquisas anteriores.

Na pesquisa realizada pelo INSEE, em 1967, sobre os lazeres (tabelas relativas aos homens), foram retomados os indicadores de tempo livre, tais como o tempo de trabalho (cf. F.C., IV); da pesquisa sobre a formação e a qualificação profissional de 1970 (tabelas relativas aos homens), foram extraídos os dados sobre a categoria socioprofissional do pai (trajetória social), diploma do pai (capital cultural herdado) e diploma do indivíduo (capital escolar) (cf. F.C., II); por sua vez, a pesquisa sobre as remunerações de 1970 forneceu as informações relativas à quantia das remunerações, às propriedades rurais e urbanas, às ações da Bolsa de Valores, aos lucros industriais, comerciais, assim como aos salários (capital econômico) (cf. F.C., I); por último, a pesquisa sobre o consumo familiar, em 1972, proporcionou os dados relativos às quantias do consumo, à posse de máquina de lavar louça e de telefone, assim como ao estatuto de ocupação da moradia e à casa de campo (cf. F.C., III); e no censo de 1968, os dados sobre o porte, avaliado pelo número de habitantes, do lugar de residência.

2 A fim de evitar que a legibilidade do esquema fosse prejudicada, foram reproduzidos apenas os histogramas de algumas categorias: eis o que é suficiente para mostrar que a parcela dos indivíduos oriundos das classes superiores - em negrito - cresce nitidamente à medida que alguém sobe na hierarquia social, enquanto diminui a parcela daqueles que são oriundos das classes populares.



--- Page 117 ---

Ao justapor as informações concernentes a domínios que, para os sistemas de classificação habitual, estão separados - a tal ponto que a proposição de um simples paralelismo é algo impensável ou escandaloso - e ao manifestar, assim, as relações, apreendidas pela intuição imediata que, por sua vez, serve de orientação para as classificações da existência comum, entre todas as propriedades e práticas características de um grupo, o esquema sinótico obriga a procurar o fundamento de cada um desses sistemas de "escolha".

Além das informações diretamente coletadas pela pesquisa, foi utilizado um conjunto de índices de consumo cultural, tais como a posse de um piano ou de discos, a utilização de televisão, a freqüência dos museus, exposições, espetáculos de variedades e salas de cinema, a inscrição em uma biblioteca, em cursos, a manutenção de uma coleção, a prática de esportes - todos esses dados foram extraídos da pesquisa do INSEE de 1967 sobre os lazeres (cf. F.C., IV); informações sobre os consumos e o estilo de vida dos membros da classe dominante (aparelho hi,11, barco, cruzeiros marítimos, bridge, coleção de quadros, champanha, whisky, esportes praticados, etc.) retiradas das pesquisas da SOFRES e do CESP (cf. F.C., V e VI); ou, ainda, informações sobre a freqüência do teatro fornecidas pela pesquisa da SEMA [Société d'Encouragement aux Métiers d'Arts] (cf. F.C., XIV), sobre os atores favoritos através das pesquisas IFOP [Institut français d'opinion publique] (cf. F.C., IX e X), sobre a leitura de jornais, semanários e revistas através das pesquisas do CSE [Centre de Sociologie Européenne] e do CESP (cf. F.C., XXVIII), sobre diferentes atividades e práticas culturais (cerâmica, festas populares, etc.) pela pesquisa da Secretaria de Estado da Cultura (cf. F.C., VII), etc.

--- Page 118 ---

Percebe-se imediatamente que a posse de um piano e a escolha do Concerto para a mão esquerda dizem respeito, sobretudo, aos membros das profissões liberais; ou que a caminhada e a montanha são particularmente características, ao mesmo tempo, dos professores do secundário e quadros do setor público; ou que a natação, colocada a meia distância entre a nova pequena burguesia e os quadros do setor privado ou engenheiros, participa dos estilos de vida desses dois conjuntos de profissões. Assim, em torno do título de cada fração, encontram-se reunidos os traços mais pertinentes, por serem os mais distintivos, de seu estilo de vida

--- Page 159 ---

O habitus e o espaço dos estilos de vida

O espaço social tal como foi descrito é uma representação abstrata, produzida mediante um trabalho específico de construção e, à maneira de um mapa, proporciona uma visão panorâmica, um ponto de vista sobre o conjunto dos pontos a partir dos quais os agentes comuns - entre eles, o sociólogo ou o próprio leitor em suas condutas habituais - lançam seu olhar sobre o mundo social.

No entanto, o mais importante é, sem dúvida, que a questão desse espaço é formulada nesse mesmo espaço; que os agentes têm sobre este espaço pontos de vista que dependem da posição ocupada aí por eles e em que, muitas vezes, se exprime sua vontade de transformá-lo ou conservá-lo. É assim que um grande número de palavras utilizadas pela ciência para designar as classes que ela constrói são emprestadas ao uso habitual em que servem para exprimir a visão - freqüentemente, polêmica - que os grupos têm uns dos outros.


O habitus é, com efeito, princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas. Na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja, capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida.

A relação estabelecida entre as características pertinentes da condição econômica e social - o volume e estrutura do capital - e os traços distintivos associados à posição correspondente no espaço dos estilos de vida não se torna uma relação inteligível a não ser pela construção do habitus como fórmula geradora que permite justificar, ao mesmo tempo, práticas e produtos classificáveis, assim como julgamentos, por sua vez, classificados que constituem estas práticas e estas obras em sistema de sinais distintivos.

--- Page 161 ---

Condições diferentes de existência produzem habitus diferentes.

Estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas, o habitus é também estrutura estruturada: o princípio de divisão em classes lógicas que organiza a percepção do mundo social é, por sua vez, o produto da incorporação da divisão em classes sociais.

Sistema de diferenças: a identidade social define-se e afirma-se na diferença.

Sistema de esquemas geradores de práticas que, de maneira sistemática, exprime a necessidade e as liberdades inerentes à condição de classe e a diferença constitutiva da posição, o habitus.

--- Page 162 ---

As práticas do mesmo agente e, mais amplamente, as práticas de todos os agentes da mesma classe, devem a afinidade de estilo que transforma cada uma delas em uma metáfora de qualquer uma das outras ao fato de serem o produto das transferências de um campo para outro dos mesmos esquemas de ação: paradigma familiar do operador analógico que é o habitus, a disposição designada por "escrita", ou seja, uma forma singular de traçar caracteres, produz sempre a mesma escrita, isto é, traços gráficos que, a despeito das diferenças de tamanho, matéria e cor associadas ao suporte (folha de papel ou quadro negro) ou ao instrumento (caneta-tinteiro ou giz), portanto, a despeito das diferenças entre os conjuntos motores mobilizados, apresentam um aspecto familiar imediatamente perceptível, à maneira de todos os traços de estilo ou de atitude pelos quais é possível reconhecer determinado pintor ou escritor tão infalivelmente quanto um homem pela sua maneira de andar. 3

O gosto, propensão e aptidão para a apropriação - material e/ou simbólica - de determinada classe de objetos ou de práticas classificadas e classificantes é a fórmula geradora que se encontra na origem do estilo de vida, conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos - mobiliário, vestuário, linguagem ou hexis corporal - a mesma intenção expressiva.

A visão do mundo de um velho artesão marceneiro, sua maneira de administrar o orçamento, o tempo ou o corpo, sua utilização da linguagem e sua escolha de roupas estão inteiramente presentes em sua ética do trabalho escrupuloso e impecável, aplicado, caprichado e bem acabado, assim como em sua estética do trabalho pelo trabalho que o leva a avaliar a beleza de seus produtos pelo que exigem de aplicação e de paciência.

--- Page 163 ---

O gosto é o operador prático da transmutação das coisas em sinais distintos e distintivos, das distribuições contínuas em oposições descontínuas; ele faz com que as diferenças inscritas na ordem física dos corpos tenham acesso à ordem simbólica das distinções significantes.

Ele encontra-se, assim, na origem do sistema dos traços distintivos que é levado a ser percebido como uma expressão sistemática de uma classe particular de condições de existência. Ele engendra o conjunto das "escolhas" constitutivas de estilos de vida classificados e classificantes que adquirem seu sentido - ou seja, seu valor - a partir de sua posição em um sistema de oposições e de correlações.

Na seqüência de uma mudança de posição social, as condições em que o habitus foi produzido não coincidem com as condições nas quais ele funciona. O gosto, ou seja, gosto de necessidade ou gosto de luxo - e não uma baixa ou elevada renda - é que comanda as práticas objetivamente ajustadas a tais recursos.

A homologia entre os espaços

--- Page 164 ---

Contentar-nos-emos em indicar, de forma bastante esquemática, como os dois grandes princípios de organização do espaço social comandam a estrutura e a mudança do espaço do consumo cultural.

Em matéria de consumo cultural, a oposição principal, segundo o volume global do capital, estabelece-se aqui entre o consumo, designado como distinto por sua própria raridade, das frações mais bem providas, ao mesmo tempo, em capital econômico e em capital cultural, por um lado, e, por outro, o consumo considerado socialmente como vulgar-por ser, a um só tempo, fácil e comum- dos mais desprovidos nesses dois aspectos de capital

--- Page 165 ---

A forma e a substância

O verdadeiro princípio das diferenças que se observam no campo do consumo, e muito além dessa área, é a oposição entre os gostos de luxo (ou de liberdade) e os gostos de necessidade: os primeiros caracterizam os indivíduos que são o produto de condições materiais de existência definidas pela distância da necessidade, pelas liberdades ou, como se diz, às vezes, pelas facilidades garantidas pela posse de um capital; por sua vez, os segundos exprimem, em seu próprio ajuste, as necessidades de que são o produto.

A idéia de gosto, tipicamente burguesa, já que supõe a liberdade absoluta da escolha, é tão estreitamente associada à idéia de liberdade que é difícil conceber os paradoxos do gosto da necessidade: ou por sua abolição pura e simples, transformando a prática em um produto direto da necessidade econômica - os operários comem feijão por não disporem de recursos para comprar outro alimento - e ignorando que, na maior parte do tempo, a necessidade só é satisfeita porque os agentes têm propensão a satisfazê-la por terem o gosto daquilo a que, de qualquer modo, estão condenados.

--- Page 167 ---

A arte de beber e de comer continua sendo, sem dúvida, um dos únicos terrenos em que as classes populares se opõem, explicitamente, à arte legítima de viver. À nova ética da sobriedade para a magreza - tanto mais reconhecida quanto mais elevada for a posição na hierarquia social -, os camponeses e, sobretudo, os operários, opõem uma moral da boa vida.

--- Page 168 ---

Dispensando para a alimentação menos que os operários com qualificação, os empregados consomem menos pão, carne de porco, salsicharias, leite e queijos, coelhos e aves de criação, legumes secos e ingredientes gordurosos; além disso, no âmbito de um orçamento de alimentação mais restrito, dispensam uma soma equivalente para a carne - boi, vitela, carneiro, cordeiro - e um pouco mais para o peixe, frutas frescas e aperitivos. Estas transformações da estrutura do consumo alimentar são acompanhadas por um aumento das despesas em matéria de higiene ou de cuidados corporais - ou seja, para a saúde e, ao mesmo tempo, para a beleza -e de vestuário, assim como de um leve aumento das despesas com cultura e lazer.

--- Page 170 ---

Compreende-se melhor que o materialismo prático - manifestado, sobretudo, na relação com os alimentos - seja um dos componentes mais fundamentais do ethos, até mesmo, da ética popular: a presença ao presente que se afirma no cuidado em aproveitar dos bons momentos e de aceitar o tempo tal como ele se apresenta é, por si só, uma afirmação de solidariedade com os outros - que são, aliás, na maior parte das vezes, a única garantia presente contra as ameaças do futuro - na medida em que esta espécie de imanentismo temporal é um reconhecimento dos limites que definem a condição. Eis porque a sobriedade do pequeno-burguês é sentida, profundamente, como uma ruptura: abstendo-se de tomar o bom tempo e de vivê-lo com os outros, o pequeno-burguês de aspiração atraiçoa sua ambição de arrancar-se ao presente comum quando ele não constrói uma verdadeira imagem de si em torno da oposição entre a casa e o bar, a abstinência e a intemperança, ou seja, também, entre a salvação individual e a solidariedade coletiva.

Por oposição ao restaurante burguês ou pequeno-burguês, no qual cada mesa constitui um pequeno território separado e apropriado (pede-se licença para retirar uma cadeira ou o saleiro), o bar popular é uma companhia (daí, a saudação "Olá, companheiros!" ou "Bom-dia a todo o mundo" ou "Tudo bem, caras?" do recém-chegado) na qual o indivíduo se integra.

A arte de zombar dos outros sem irritá-los por meio de deboches ou de injúrias rituais que são neutralizados por seu próprio excesso e que, supondo uma grande familiaridade, tanto pela informação que utilizam, quanto pela própria liberdade de que dão testemunho, são de fato testemunhos de atenção ou de afeição, determinadas maneiras de valorizar sob a aparência de denegrir.

--- Page 176 ---

Assim, o motivo pelo qual as classes populares consideram o peixe, por exemplo, como um alimento pouco conveniente para os homens não é somente por sua leveza, mas também por fazer parte, em companhia das frutas -salvo, as bananas - dessas coisas delicadas que não podem ser manipuladas por mãos de homem.

E, sobretudo, por sua exigência em ser comido de um modo que, em todos os aspectos, contradiz a maneira propriamente masculina de comer, ou seja, com moderação, em pequenas doses, mastigando lentamente com a parte dianteira da boca e na ponta dos dentes - tratando-se das espinhas. Fica comprometida totalmente a identidade masculina - o que se chama a virilidade - nestas duas maneiras de comer: na ponta dos lábios e por pequenas doses, como as mulheres a quem convém debicar; ou com a boca cheia, grande apetite e pedaços enormes, como convém aos homens.

Nenhum comentário: