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6.11.17

ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1970.

PREFÁCIO À EDIÇÃO INGLESA

Norbert Elias foi um dos cientistas alemães que fugiu dá Alemanha nos anos 30, fazendo da Inglaterra o seu lar.

What is Sociology? foi publicado pela primeira vez em 1970, produto tardio da carreira do seu' autor.

Numa breve introdução, ilusoriamente superficial, o leitor descobrirá uma nova justificação da sociologia, recorrendo-se às ideias básicas primeiramente traçadas por Augusto Comte. Posteriormente, Elias irá retomar categorias básicas do pensamento sociológico, continuando assim a «tradição sociológica» embora tomando uma posição crítica relativamente a contributos maiores tais como os de Marx, Weber e Parsons.

O leitor aperceber-se-á de que Introdução à Sociologia se baseia num trabalho científico, que reúne simultaneamente aspectos de história política, de psicologia das profundezas e de sociologia, numa síntese original de considerável vigor.

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INTRODUÇÃO

Aquele que estuda e pensa a sociedade é ele próprio um dos seus membros.

A sociedade que é muitas vezes colocada em oposição ao indivíduo, é inteiramente formada por indivíduos, sendo nós próprios um ser entre os outros.

Ao pensarmo-nos na sociedade contemporânea, é difícil fugir ao sentimento de estarmos a encarar seres humanos como se fossem meros objectos, separados de nós por um fosso intransponível. Este sentido de separação é expresso, reproduzido e reforçado pôr conceitos e idiomas correntes que fazem com que este actual tipo de experiência surja como evidente e incontestável.

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Tal como já foi dito, para compreender de quê trata a sociologia temos que estar conscientes de nós próprios como seres humanos entre outros seres humanos.

A maneira corrente de formarmos ás palavras e os conceitos reforça a tendência do nosso pensamento para reificar e desumanizar as estruturas sociais.

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Não é difícil compreender que o que pretendemos conceptualizar como forças sociais são de facto forças exercidas pelas pessoas, sobre outras pessoas e sobre elas próprias.

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É muito comum esta necessidade de nos excluirmos <ou de excluirmos o nosso grupo) de uma explicação em termos de representações formadas com base noutras pessoas.

Muitas palavras e conceitos cujas formas actuais derivam essencialmente da interpretação de factos naturais, foram transferidos indevidamente para a interpretação dos fenômenos humanos e sociais.

As tarefas da sociologia incluem não só o exame e interpretação de forças compulsivas específicas que agem sobre as pessoas nos seus grupos e sociedades empiricamente observáveis, mas também a libertação do discurso e do pensamento relativos a essas forças, das suas ligações com modelos heterónomos anteriores.

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Muitos dos conceitos fundamentais das ciências da natureza, que gradualmente se foram desenvolvendo, foram provando ser mais ou menos adequados à observação e manipulação de processos físico-químicos. Por esta razão, estes conceitos fundamentais surgem àqueles que os herdam como se fossem eternamente válidos e consequentemente eternos. As correspondentes palavras, categorias e modos de pensamento parecem tão evidentes, que é fácil imaginar que cada ser humano os conheceu intuitivamente.

A concepção filosófica de um conhecimento científico estático, considerado como forma de conhecimento «eternamente humana», impediu quase completamente qualquer investigação sobre a sociogénese e a psicogénese do vocabulário científico e sobre modos de discurso ou de pensamento. No entanto, só investigações deste tipo nos colocarão no caminho certo, que nos Permite explicar esta reorientação da experiência e do Pensamento humanos.

O problema é geralmente minimizado mesmo antes de ser colocado pois é visto como «Um assunto meramente histórico», oposto aos chamados Problemas de teoria sistemática. Mas esta distinção constitui em si mesma uma ilustração de como é inadequada a utilização de modelos vindos das ciências naturais na interpretação de processos sociais a longo prazo, em que se inclui a «cientifização» do pensamento.

Mesmo tendo presente que as forças sociais são forças exercidas por pessoas sobre si mesmas e sobre os outros, é ainda muito difícil quando falamos e pensamos, precavermo-nos contra a pressão social das estruturas verbais e conceptuais. Estas fazem com que as forças sociais pareçam forças exercidas sobre os objectos da natureza — forças exteriores às pessoas, exercidas sobre elas como se fossem «objectos».

Demasiadas vezes falamos e pensamos como se não só as montanhas, nuvens e tempestades, mas também as aldeias e estados, a economia e a política, os factores de produção e o avanço técnico, as ciências e a indústria, entre inúmeras outras estruturas sociais, fossem entidades extra-humanas, com as suas leis próprias e, por conseguinte, totalmente independentes da acção ou da inacção humanas.

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A discussão da dificuldade e morosidade de uma tal reorientação da linguagem social e do pensamento podia dar-nos já uma ideia do tipo de forças que as pessoas exercem umas sobre as outras.

Seria mais fácil compreender que tais forças são totalmente distintas, se a nossa linguagem e pensamento não estivessem tão totalmente penetrados por palavras e conceitos tais como «necessidade causai», «determinismo», «leis científicas» e outras do mesmo tipo. Estes denotam modelos derivados de uma experiência prática no campo das ciências naturais, da física e da química. Foram mais tarde transferidos para outros campos de experimentação, para os quais não" tinham sido de modo algum primeiramente destinados, como por exemplo o campo das relações humanas, a que chamamos sociedade. Neste processo perdeu-se a consciência da sua relação original com as descobertas relativas a acontecimentos físico-químicos. Assim, apresentam-se-nos agora como conceitos gerais, que, de certo modo, surgem como concepções a priori do modo como os acontecimentos se interligam; todos os homens parecem possuí-los como fazendo parte de um senso comum ou de uma razão inatos, independentes da experiência.

Tomemos por exemplo a noção de «força». A nossa utilização da linguagem vulgar, com que comunicamos uns com os outros, exerce uma espécie de força sobre o discurso e o pensamento dos indivíduos. Este gênero de força é de tipo muito diferente por exemplo da força da gravidade que, de acordo com as leis científicas, atrai uma bola para a terra quando esta é lançada ao ar. No entanto, quais são hoje os conceitos distintos e específicos que conseguem exprimir esta diferença de um modo claro e inteligível?

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Especial atenção para a diminuição dos elementos fantasiosos e para o aumento dos elementos realistas do nosso pensamento, como sendo características da cientifização dos nossos modos de pensamento e de aquisição de conhecimentos.

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Censurando os cientistas, também fugimos à obrigação de procurar uma explicação mais realista para os conflitos sociais, que levam a uma troca crescente de ameaças entre grupos de pessoas. A queixa de que nos tornamos «escravos da máquina» ou da tecnologia, é semelhante. Apesar dos pesadelos da ficção científica, as máquinas não têm uma vontade própria. Não podem por si mesmas inventar ou produzir e não podem obrigar-nos a que as sirvamos. Todas as decisões que tomam e actividades que desempenham são decisões e actividades humanas. Projectamos nelas ameaças e coerções mas, se as examinarmos mais atentamente, veremos sempre grupos de
pessoas ameaçando-se e coagindo-se mutuamente por intermédio das máquinas.

Quando nas sociedades científico-técnico-industriais atribuímos o nosso mal-estar às bombas ou às máquinas, aos cientistas ou aos engenheiros, estamos a fugir à difícil e talvez desagradável tarefa de procurar uma interpretação mais clara e mais realista da estrutura das conexões humanas, particularmente dos padrões de conflito que nelas se fundamentam.

O desenvolvimento tecnológico tem uma influência real no curso que tomam as interconexões humanas.

Mas a realidade tecnológica «em si mesma» nunca pode ser a causa da vida atribulada das pessoas e das forças compulsivas; estas são sempre provocadas pela utilização que fazemos da técnica e do seu ajustamento à estrutura social.

É preocupação fundamental desta obra promover a evolução de um pensamento e de uma imaginação sociais relativamente à percepção das interconexões e configurações elaboradas pelas pessoas.

O perigo não reside no progresso da ciência e da tecnologia, mas no modo como são usadas as descobertas científicas e as investigações tecnológicas sob pressão da sua estreita interdependência, reside nas lutas comuns pelas oportunidades de distribuição de toda a espécie de poder.

A fixação mental em fenômenos familiares e tangíveis como bombas nucleares e máquinas, ou, num sentido mais lato, na ciência e na tecnologia, obscurecendo as causas sociais de medo e de mal estar, é sintoma de uma das características fundamentais da nossa época: esta reside na discrepância entre, por um lado, a nossa capacidade relativamente grande de ultrapassarmos — de um modo adequado e realista — problemas causados por acontecimentos naturais extra-humanos, e, por outro, a nossa limitada capacidade de resolver com a mesma segurança os problemas de coexistência humana.

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Na medida em que toda a nossa vida, mesmo nos seus aspectos mais íntimos, foi invadida pela técnica, estes princípios governam todos os nossos pensamentos e ações.

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Os nossos pensamentos e ações, no que diz respeito à coexistência social, estão quase no mesmo nível de desenvolvimento que o pensamento e comportamento dos medievais

Em assuntos sociais, ainda hoje as pessoas estão sujeitas a pressões e ansiedades que não conseguem compreender. Como não conseguem viver na angústia, sem que para tal tenham uma explicação, preenchem os lapsos de compreensão com fantasias.

No nosso tempo, o mito Nacional Socialista foi um exemplo deste tipo de interpretação para a inquietação e angústia sociais.

Tal como no caso da peste, a ansiedade e inquietação sobre as misérias sociais encontraram saída em explicações fantasiosas, que consideravam as minorias socialmente fracas como agitadoras e culpadas, levando consequentemente ao seu extermínio. Constatamos que é característica do nosso tempo a coexistência de uma compreensão factual altamente realista, no que respeita a aspectos físicos e técnicos, e de soluções fantasiosas dadas aos problemas sociais

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A elevada capacidade que o homem tem de fantasiar é sua característica exclusiva.

Quando não controlado pelo conhecimento dos factos, este tipo de fantasia, especialmente numa ocasião de crise, coloca-se entre os impulsos mais falíveis e mesmo mais assassinos que governam a acção humana. Nestas situações, as pessoas não precisam de ser loucas para dar livre curso a estes impulsos.

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Como exemplo, consideramos a situação de conflito entre as grandes potências. Esta persiste desde a Segunda Guerra Mundial, tendo influenciado e obscurecido de um modo sempre crescente os conflitos entre estados em todo o mundo.

Este antagonismo, que hoje assume uma dimensão mundial, assemelha-se consideravelmente na sua estrutura ao antagonismo existente numa antiga Europa, em que os sonhos de príncipes e generais protestantes e católicos se chocavam. Nesses tempos, as pessoas eram tão apaixonadamente ávidas de matar-se indiscriminadamente umas às outras, devido aos seus sistemas de crenças, como hoje parecem desejosas de matar indiscriminadamente, pela simples razão de que alguns preferem o sistema de crenças dos russos, outros o dos americanos e outros o dos chineses.

É raro encontrarmos um modelo sociológico inteligível da dinâmica das relações entre os estados. Tomemos, por exemplo, a dinâmica da «guerra fria» entre as grandes potências. Ambas 48 partes envolvidas procuram aumentar o potencial do Seu próprio poder, à custa do medo perante o potencial de poder do adversário. Assim se justificam os seus receios recíprocos.

Contudo, há muita gente que hoje acredita ser possível uma abordagem dos problemas sociais do ponto de vista da sua própria «racionalidade» intrínseca, independentemente do actual estádio de desenvolvimento do conhecimento e pensamento sociológicos e, no entanto, com a mesma «abordagem objectiva» que um físico ou um engenheiro trazem aos problemas científicos ou tecnológicos.

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Quanto à máquina governativa, à burocracia, talvez não seja deslocado dizer, como Max Weber, que a estrutura das burocracias e as atitudes dos burocratas se tornaram mais racionais se as compararmos com as dos séculos anteriores; mas será pouco correcto pretendermos, como Max Weber na realidade pretendeu, que a burocracia contemporânea é uma forma racional de organização e que o comportamento dos seus funcionários é um comportamento racional. Isto é altamente enganador.

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MODELOS DE JOGO

Não será então necessário que os sociólogos confiem primeiramente nas descobertas de todas as outras disciplinas, que, como a biologia, a psicologia ou a história, estudam os seres humanos individuais — as partes constituintes das sociedades — e depois vejam se, como sociólogos, têm algo a acrescentar a estas descobertas?

Há um número considerável de sociólogos que procedem deste modo. Investigam o comportamento, as perspectivas e as experiências das pessoas individuais e submetem os seus resultados a processos estatísticos. Por meio deste tipo de investigações, centradas nas «partes componentes» das sociedades, procuram tornar evidentes as características das «unidades compósitas» das Próprias sociedades.

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Torna-se necessário não só explorar uma unidade compósita em termos das suas partes componentes, como também explorar o modo como esses componentes individuais se ligam uns aos outros, de modo a formarem uma unidade. O estudo da configuração' das partes unitárias ou, por outras palavras, a estrutura da unidade composta, torna-se um estudo de direito próprio.

Esta é a razão pela qual a sociologia não se pode reduzir à psicologia, à biologia ou à física: o seu campo de estudo — as configurações de seres humanos interdependentes — não se pode explicar se estudarmos os seres humanos isoladamente 2.

Em muitos casos é aconselhável um procedimento contrário — só podemos compreender muitos aspectos do comportamento ou das ações das pessoas individuais se começarmos pelo estudo do tipo da sua interdependência, da estrutura das suas sociedades, em resumo, das configurações que formam uns com os outros.

O primeiro modelo, a que chamaremos «Competição Primária», é no entanto uma excepção teórica altamente significativa; representa uma competição real e mortal entre dois grupos e não é de modo algum um jogo.

Todos os modelos se baseiam em duas ou mais pessoas que medem as suas forças.

Para muita gente, o termo «poder» tem um aroma desagradável. Isto se deve ao facto de, durante todo o processo de desenvolvimento das sociedades humanas, o equilíbrio de poder ter sido extremamente desigual; pessoas ou grupos de pessoas com possibilidades relativamente grandes de acesso ao poder, exerciam habitualmente essas possibilidades em pleno, muitas vezes de um modo brutal e sem escrúpulos, tendo em vista os seus próprios fins.

O equilíbrio de poder não se encontra unicamente na grande arena das relações entre os estados, onde é freqüentemente espectacular, atraindo grande atenção. Constitui um elemento integral de todas as relações humanas.

Também deveríamos ter presente que o equilíbrio de poder, tal como de um modo geral as relações humanas, é pelo menos bipolar e, usualmente, multipolar.

Desde que nasce, a criança tem poder sobre os pais, e não só os pais sobre a criança.

Igualmente bipolar é o equilíbrio de poder entre um escravo e o seu senhor. O senhor tem poder sobre o escravo, mas o escravo também tem poder sobre o seu senhor, na proporção da função que desempenha para o senhor — é a dependência que o senhor tem relativamente a ele.

Porém, sejam grandes ou pequenas as diferenças de poder, o equilíbrio de poder está sempre presente onde quer que haja uma interdependência funcional entre pessoas.

O poder não é um amuleto que um indivíduo possua e outro não; é uma característica estrutural das relações humanas — de todas as relações humanas.

Os modelos demonstram de um modo simplificado o caracter relacionai do poder. Ao utilizarmos os modelos de jogos de competição para tornar evidentes as configurações de poder, o conceito de «relação de poder» é aqui substituído pelo termo «força relativa dos jogadores».

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Os modelos de jogo têm como preâmbulo a Competição Primária, um modelo que mostra a relação entre dois grupos não regulados por normas.

A Competição Primária pode servir como advertência de que é perfeitamente possível estruturar as relações sociais entre os indivíduos, mesmo que estas se desenrolem sem regras. Mesmo uma situação que aparece às pessoas nela envolvidas como o cúmulo da desordem faz parte de uma ordem social.

Entre os homens, tal como na natureza, não é possível o caos absoluto.

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A COMPETIÇÃO PRIMARIA: UM MODELO DE COMPETIÇÃO SEM REGRAS

Duas pequenas tribos, A e B, encontram-se quando andam à caça numa grande extensão de floresta. Ambas têm fome.

A caça tem-se tornado cada vez mais rara

Assim, os dois grupos encontram-se no caminho. Envolvem-se numa luta prolongada.

Os dois grupos são rivais na recolha de reservas alimentares. Dependem um do outro, como num jogo de xadrez (que originariamente foi um Jogo guerreiro), os movimentos de um grupo determinam os movimentos do outro grupo e vice-versa.

As estruturas internas de cada grupo são determinadas, em maior ou menor grau, pelo que cada grupo pensa que o outro irá fazer depois.

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Não é possível explicar as ações, os planos e os objectivos de qualquer um dos dois grupos se eles forem conceptualizados como decisões, planos e objectivos comuns a cada grupo, considerado por si mesmo, independentemente do outro grupo. Só se podem explicar se tomarmos em consideração as forças coercivas que os grupos exercem um sobre o outro, devido à sua interdependência, à função bilateral que desempenham como inimigos.

Como inimigos, desempenham reciprocamente uma função, da qual temos de estar conscientes se queremos compreender as ações e planos de cada uma das duas tribos rivais. Aqui, como podemos ver, o termo «função» não é usado como expressão de uma tarefa desempenhada por uma parte, dentro de uma «totalidade» harmoniosa. O modelo indica-nos que, tal como o conceito de poder, o conceito de função deve ser compreendido como um conceito de relação. Só podemos falar de funções sociais quando nos referimos a interdependências que constrangem as pessoas, com maior ou menor amplitude.

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De um modo mais simples, poderíamos dizer: quando a alguém (ou a um grupo de pessoas) falta algo que outro alguém ou grupo de pessoas possui, o último desempenha uma função relativamente ao primeiro. Assim, os homens têm uma função para com as mulheres e as mulheres para com os homens, os pais para com os filhos e os filhos para com os pais.

Compreender deste modo o conceito de «função» demonstra a sua relação com o poder dentro do quadro das relações humanas.

O seu potencial de retenção recíproca daquilo que necessitam é geralmente desigual, o que significa que o poder coercivo é maior de um lado do que do outro. Mudanças na estrutura das sociedades, nas relações globais de interdependências funcionais, podem induzir um grupo a contestar o poder de coerção do outro grupo, o seu «potencial» de retenção.

Na raiz desta provas de força estão geralmente problemas como estes: quem tem maior potencial de reter aquilo de que o outro necessita? Quem, por conseqüência, está mais ou menos dependente do outro?

Quem, portanto, tem que se submeter ou adaptar mais às exigências do outro?

A Competição Primária apresenta-se como um caso de fronteira. Nela, um dos lados tem como fim privar o outro, não só das suas funções sociais como também da sua própria vida.

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Este caso de interdependência entre inimigos violentos encerrados, numa luta de vida e de morte, é um processo de interpenetração. A seqüência de movimentos em ambos os lados só pode ser compreendida e explicada em termos da dinâmica imanente na sua interdependência. Se a seqüência das ações em ambos os lados fosse estudada isoladamente, perderia todo o sentido.

MODELOS DE JOGO: MODELOS DE PROCESSOS DE INTERPENETRAÇÃO COM NORMAS

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Jogos de duas pessoas

Imaginemos um jogo entre duas pessoas, sendo uma delas muito superior à outra — A é um jogador muito forte e B é muito fraco. Neste caso, A tem uma grande capacidade de controlo sobre B. Até certo ponto, A pode forçar B a fazer determinadas jogadas. Por outras palavras, A tem «poder» sobre B.

Mas esta «capacidade de obrigar» não é ilimitada; o jogador B, embora seja relativamente fraco, tem um grau de poder sobre A

A tem de se orientar atendendo às jogadas anteriores de B.

Contudo, a grande força de A no jogo não lhe dá apenas um grau de controlo sobre o seu adversário B.

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Também lhe dá, em acréscimo, um alto grau de controlo sobre o jogo enquanto tal.

Embora o seu controlo sobre o jogo não seja absoluto, pode em grande parte determinar o seu curso (o processamento do jogo) e, portanto, também o seu resultado.

É importante fazer esta distinção conceptual entre dois tipos de controlo, que resultam da força bastante superior de um dos jogadores; por um lado, o controlo que ele pode exercer sobre o seu adversário e, por outro, o controlo que como tal lhe é dado sobre p decurso do jogo.

À medida que a desigualdade de forças dos dois jogadores diminui, resultará da interpenetração de jogadas de duas Pessoas individuais, um processo de jogo que nenhuma delas planeou.

Jogos de muitas pessoas a um só nível

(2a) Imaginemos um jogo em que o jogador A está simultaneamente a jogar com vários outros indivíduos B,

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C, D, etc. nas seguintes condições: A é muito mais forte do que qualquer um dos seus adversários e está a jogar separadamente com cada um deles.

Os jogadores B, C, D, etc., não estão a jogar em conjunto mas separadamente, e a única ligação que têm entre si ó o facto de cada indivíduo jogar separadamente contra o mesmo adversário mais forte, A.

Em cada um dos jogos, A é esmagadoramente mais poderoso; tem um alto grau de controlo, tanto sobre o seu adversário como sobre o decurso do próprio jogo.

(2b) Imaginemos um jogo em que o jogador A joga simultaneamente com vários adversários mais fracos, não separadamente, mas contra todos eles ao mesmo tempo.

O facto de um grupo ser inequivocamente formado por muitos jogadores mais fracos representa um enfraquecimento para a superioridade de A.

Comparando com (Ia) há muito menos certeza sobre o controle e planeamento do jogo e, portanto, menos certeza na previsão do seu resultado.

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(2d) Imaginemos um jogo em que dois grupos B, C, D, E e U, V, W, X jogam uns contra os outros, segundo regras que dão a ambos os lados oportunidades iguais de vencer, tendo cada lado aproximadamente a mesma força.

Neste caso o decurso do jogo não pode ser controlado isoladamente por nenhum dos grupos.

Nenhuma acção por parte de cada um dos lados poderá ser encarada como acção exclusiva desse lado. Antes deverá ser interpretada como continuando o processo de interpenetração e fazendo parte da futura interpenetração de ações realizada por ambos os lados.

Jogos multipessoais a vários níveis

Imaginemos um jogo para muitas pessoas, em que o número de participantes está constantemente a crescer.

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Um jogador individual terá que esperar cada vez mais pela sua vez de jogar. Tornar-se-á cada vez mais difícil ao jogador a constituição de uma representação mental do decurso do jogo e da sua figuração.

Faltando-lhe tal representação pode sentir-se perdido. Precisa de uma representação razoavelmente clara do decurso do jogo para poder planear a sua próxima jogada.

Se o número de jogadores interdependentes crescer, a configuração, desenvolvimento e orientação do jogo tornar-se-ão cada vez mais opacas para o jogador individual.

Porém, à medida que cresce o número de jogadores, o jogador individual não só começa a achar o jogo cada vez mais opaco e incontrolável como também se torna consciente da sua impossibilidade em compreendê-lo e controlá-lo.

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E, ao deteriorar-se o funcionamento", há uma pressão crescente que se exerce no grupo de jogadores com vista à sua reorganização. Abrem-se várias possibilidades; mencionaremos três, embora só nos seja possível abordar detalhadamente uma delas.

Modelos de jogo de dois níveis: tipo oligárquico

(3a) A pressão exercida sobre os jogadores individuais, devido a um aumento do seu número, pode provocar uma mudança dentro do grupo. Um grupo em que os indivíduos jogam com os outros a um mesmo nível, pode converter-se num grupo de jogadores de «dois níveis». Todos os jogadores se mantêm interdependentes mas já não jogam directamente uns com os outros. Esta função é desempenhada por funcionários especiais que coordenam o jogo — representantes, delegados, líderes, governos, cortes regias, elites monopolistas e assim por diante. Conjuntamente, formam um segundo grupo mais pequeno.

Estes são os que jogam directamente uns com os outros e uns contra os outros, mas que se mantêm, no entanto, ligados de um ou de outro modo à massa de jogadores que agora constituem uma «primeira camada».

Cada um dos níveis é mutuamente dependente possuindo reciprocamente diferentes oportunidades de poder

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Mas a distribuição de poder entre os indivíduos do primeiro e do segundo níveis pode variar muitíssimo. As diferenças de poder entre eles podem ser muito grandes — em favor dos últimos — e podem tornar-se cada vez mais pequenas. Consideremos o primeiro caso. A diferença entre o primeiro e o segundo nível é muito grande. Só os jogadores do segundo nível participam directa e activamente no jogo. Têm o monopólio de acesso ao jogo: cada um dos jogadores do segundo nível encontra-se num círculo de actividade, que já pode ser observado em jogos de um só nível. Há um pequeno número de jogadores de modo que cada um está em posição de ter uma visão da configuração dos jogadores e do jogo; pode planear a sua estratégia de acordo com esta visão e pode intervir directamente em cada jogada na configuração do jogo que está em constante movimento.

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Mesmo num jogo que não tenha mais do que dois níveis, a configuração do jogo e dos jogadores já possui um grau de complexidade que o impede qualquer indivíduo de usar a sua superioridade orientando o jogo na direcção das suas próprias metas e desejos.

Num jogo de dois níveis de um gênero mais antigo e oligárquico, o equilíbrio de poder a favor do nível mais elevado é muito desproporcionado, rígido e estável. O círculo mais pequeno de jogadores, a nível mais alto, é muito superior em força ao círculo maior no nível mais baixo. No entanto, a interdependência dos dois círculos impõe limitações a cada jogador, mesmo aos de nível mais alto.

é de notar que as suas possibilidades de controlar 0 jogo são mais fracas do que as do jogador A no modelo (Ia). Há uma razão forte para mais uma vez acentuarmos esta diferença: nas descrições históricas.

As ações dos jogadores em questão são muitas vezes explicadas como se fossem as jogadas do jogador A no modelo (Ia). Mas, na verdade, as três ou quatro formas de equilíbrio de poder, interdependentes num modelo oligárquico de dois níveis, tornam possíveis muitas constelações que limitam consideravelmente as possibilidades de controlo mesmo pôr parte do jogador mais forte no nível superior.

Modelos de jogo a dois níveis: tipo democrático crescentemente simplificado

(3b) Imaginemos um modelo de dois níveis em que a força dos jogadores de nível mais baixo vai crescendo, lentamente mas de um modo nítido, relativamente à força dos jogadores de nível mais alto. Se diminuírem as diferenças de poder entre os dois grupos, reduzindo-se as suas desigualdades, então o equilíbrio de poder tornar-se-á mais flexível e elástico.

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Também aqui, a disposição dos jogadores que formam o nível mais baixo não tem meios para conduzir o curso do jogo. Mas ainda tem um poder manifesto comparativamente pequeno e nenhum controlo directo sobre o grupo de nível mais alto. Geralmente, os jogadores de nível mais baixo apenas exercem uma influência latente e indirecta, sendo uma das razões a sua falta de organização.

No modelo (3a) 0 jogo compreendido no pequeno círculo de alto nível é nitidamente o centro de todo o jogo de dois níveis, aparecendo globalmente os jogadores de baixo nível como figuras periféricas, como meras estatísticas. Porém, no modelo (3b), à medida que cresce a influência dos jogadores de baixo nível, o jogo torna-se cada vez mais complexo para todos os jogadores de nível mais alto. A estratégia de cada um, nas suas relações com os grupos de nível mais baixo que representa, torna-se um aspecto do jogo tão importante como a sua estratégia relativamente aos outros jogadores de nível mais alto. Agora cada jogador individual está muito mais constrangido e limitado, refreado pelo número de jogos simultaneamente interdependentes que tem que jogar com jogadores ou grupos de jogadores que se tornam cada vez menos inferiores socialmente.

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À medida que a distribuição de poderes se torna menos desigual e mais difusa, também é mais evidente que um jogador isolado ou uma posição do grupo, pouco podem controlar e guiar o jogo.

Torna-se claro que o decurso do jogo — que é o produto de jogadas que se cruzam, efectuadas por um grande número de jogadores, entre os quais há uma diferença de poderes enfraquecida e tendendo cada vez mais a enfraquecer — por sua vez determina a estrutura das jogadas individuais de cada jogador.

Em vez dos jogadores acreditarem que o jogo vai tomando forma a partir das jogadas individuais, manifestam uma tendência (que cresce lentamente) a produzir conceitos impessoais que dominem a sua experiência do jogo. Estes conceitos impessoais têm em conta uma certa autonomia do processamento do jogo relativamente às intenções dos jogadores individuais. Implicam um processo longo e laborioso, produzindo meios de pensamento transmissíveis que corresponderão à natureza do jogo, considerando-o como algo não imediatamente controlável, mesmo pelos próprios jogadores.


Como o jogo não pode ser controlado pelos jogadores é facilmente concebido como uma espécie de entidade «super-humana». Durante muito tempo é particularmente difícil que os jogadores compreendam que a sua incapacidade de controlar o jogo deriva da sua dependência mútua, das posições que ocupam enquanto jogadores e das tensões e conflitos inerentes a esta teia que se entrelaça.

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