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4.11.17

ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

INTRODUÇÃO
Ensaio teórico sobre as relações estabelecidos-outsiders1

A descrição de uma comunidade da periferia urbana apresentada neste livro mostra uma clara divisão, em seu interior, entre um grupo estabelecido desde longa data e um grupo mais novo de residentes, cujos moradores eram tratados pelo primeiro como outsiders.

O grupo estabelecido cerrava fileiras contra eles e os estigmatizava, de maneira geral, como pessoas de menor valor humano. Considerava-se que lhes faltava a virtude humana superior — o carisma grupal distintivo — que o grupo dominante atribuía a si mesmo.

Os membros dos grupos mais poderosos que outros grupos interdependentes se pensam a si mesmos (se auto-representam) como humanamente superiores. O sentido literal do termo “aristocracia” pode servir de exemplo. Significava, literalmente, “dominação dos melhores”.

Os grupos mais poderosos vêem-se como pessoas “melhores”, dotadas de uma espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que é compartilhada por todos os seus membros e que falta aos outros. Mais ainda, em todos esses casos, os indivíduos “superiores” podem fazer com que os próprios indivíduos inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes — julgando-se humanamente inferiores.

De que modo os membros de um grupo mantêm entre si a crença em que são não apenas mais poderosos, mas também seres humanos melhores do que os de outro? Que meios utilizam eles para impor a crença em sua superioridade humana aos que são menos poderosos?

O estudo de Winston Parva versa sobre alguns desses problemas. Os moradores de uma área, na qual viviam as “famílias antigas” tratavam todos os recém-chegados como pessoas que não se inseriam no grupo, como “os de fora”. Esses próprios recém-chegados, depois de algum tempo, pareciam aceitar, com uma espécie de resignação e perplexidade, a idéia de pertencerem a um grupo de menor virtude e respeitabilidade, o que só se justificava, em termos de sua conduta efetiva, no caso de uma pequena minoria.

Constante universal em qualquer figuração de estabelecidos-outsiders: o grupo estabelecido atribuía a seus membros características humanas superiores; excluía todos os membros do outro grupo do contato social não profissional com seus próprios membros; e o tabu em torno desses contatos era mantido através de meios de controle social como a fofoca elogiosa [praise gossip], no caso dos que o observavam, e a ameaça de fofocas depreciativas [blame gossip] contra os suspeitos de transgressão.

O uso de uma pequena unidade social como foco da investigação de problemas igualmente encontráveis numa grande variedade de unidades sociais, maiores e mais diferenciadas, possibilita a exploração desses problemas com uma minúcia considerável.

Nesse sentido, o modelo pode funcionar como uma espécie de “paradigma empírico”.

Andando pelas ruas das duas partes de Winston Parva, o visitante ocasional talvez se surpreendesse ao saber que os habitantes de uma delas julgavam-se imensamente superiores aos da outra.

A única diferença entre elas era a que já foi mencionada: um grupo compunha-se de antigos residentes, instalados na região havia duas ou três gerações, e o outro era formado por recém-chegados.

Que recursos de poder lhes permitiam afirmar sua superioridade e lançar um estigma sobre os outros, como pessoas de estirpe inferior?

Ali se podiam ver as limitações de qualquer teoria que explique os diferenciais de poder tão-somente em termos da posse monopolista de objetos não humanos, tais como armas ou meios de produção, e que desconsidere os aspectos figuracionais dos diferenciais de poder que se devem puramente a diferenças no grau de organização dos seres humanos implicados.

Naquela pequena comunidade, a superioridade de forças do grupo estabelecido desde longa data baseava-se no alto grau de coesão de famílias que se conheciam havia duas ou três gerações, em contraste com os recém-chegados, que eram estranhos não apenas para os antigos residentes como também entre si. Era graças a seu maior potencial de coesão que os antigos residentes conseguiam reservar para as pessoas de seu tipo os cargos importantes das organizações locais, como o conselho, a escola ou o clube, e deles excluir firmemente os moradores da outra área, aos quais, como grupo, faltava coesão. Assim, a exclusão e a estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para que este último preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros firmemente em seu lugar.

Um grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração diferencial contribui substancialmente para seu excedente de poder; sua maior coesão permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado e de outro tipo, o que vem reforçar sua coesão, e excluir dessas posições os membros dos outros grupos — o que constitui, essencialmente, o que se pretende dizer ao falar de uma figuração estabelecidos-outsiders.

Como indica o estudo de Winston Parva, o grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as características “ruins” de sua porção “pior” — de sua minoria anômica. Em contraste, a auto-imagem do grupo estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar, mais “nômico” ou normativo — na minoria de seus “melhores” membros.

Na pesquisa fazia-se necessária uma abordagem figuracional.

Perde-se a chave do problema que costuma ser discutido em categorias como a de “preconceito social” quando ela é exclusivamente buscada na estrutura de personalidade dos indivíduos. Ela só pode ser encontrada ao se considerar a figuração formada pelos dois (ou mais) grupos implicados ou, em outras palavras, a natureza de sua interdependência.

Um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído.

Afixar o rótulo de “valor humano inferior” a outro grupo é uma das armas usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade social. Nessa situação, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último e, com isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo.

Tão logo diminuem as disparidades de força ou, em outras palavras, a desigualdade do equilíbrio de poder, os antigos grupos outsiders, por sua vez, tendem a retaliar.

O grupo de antigos residentes, famílias cujos membros se conheciam havia mais de uma geração, estabelecera para si um estilo de vida comum e um conjunto de normas.

Para preservar o que julgavam ter alto valor, eles cerravam fileiras contra os recém-chegados, com isso protegendo sua identidade grupal e afirmando sua superioridade.

A legislação estadual e federal dos Estados Unidos vem reduzindo cada vez mais a incapacidade jurídica do grupo antes escravizado e estabelecendo sua equiparação institucional ao grupo de seus antigos senhores, como concidadãos de uma mesma nação. No entanto, o “preconceito social”, as barreiras emocionais erguidas pelo sentimento de sua virtude superior, especialmente por parte dos descendentes dos senhores de escravos, e o sentimento de um valor humano inferior, de uma desonra grupal dos descendentes de escravos, não têm acompanhado o ritmo dos ajustes jurídicos.

A participação na superioridade de um grupo e em seu carisma grupal singular é, por assim dizer, a recompensa pela submissão às normas específicas do grupo. Esse preço tem que ser individualmente pago por cada um de seus membros, através da sujeição de sua conduta a padrões específicos de controle dos afetos.

A satisfação que cada um extrai da participação no carisma do grupo compensa o sacrifício da satisfação pessoal decorrente da submissão às normas grupais.

Costumeiramente, os membros dos grupos outsiders são tidos como não observantes dessas normas e restrições. Essa é a imagem preponderante desses grupos entre os membros dos grupos estabelecidos.

Como os outsiders são tidos como anômicos, o contato íntimo com eles faz pairar sobre os membros do grupo estabelecido a ameaça de uma “infecção anômica”

Nos países de língua inglesa, como em todas as outras sociedades humanas, a maioria das pessoas dispõe de uma gama de termos que estigmatizam outros grupos, e que só fazem sentido no contexto de relações específicas entre estabelecidos e outsiders. “Crioulo”, “gringo”, “carcamano”, “sapatão” e “papa-hóstia”2 são exemplos. Seu poder de ferir depende da consciência que tenham o usuário e o destinatário de que a humilhação almejada por seu emprego tem o aval de um poderoso grupo estabelecido, em relação ao qual o do destinatário é um grupo outsider, com menores fontes de poder.

Nada é mais característico do equilíbrio de poder extremamente desigual, nesses casos, do que a impossibilidade de os grupos outsiders retaliarem com termos estigmatizantes equivalentes para se referirem ao grupo estabelecido.

Quando eles começam a ser insultuosos, é sinal de que a relação de forças está mudando.

Os sintomas de inferioridade humana que os grupos estabelecidos muito poderosos mais tendem a identificar nos grupos outsiders de baixo poder e que servem a seus membros como justificação de seu status elevado e prova de seu valor superior costumam ser gerados nos membros do grupo inferior — inferior em termos de sua relação de forças.

A pobreza — o baixo padrão de vida — é um deles.

De 1830 em diante, mais ou menos, a expressão “os grandes mal lavados” [the great unwashed] tornou-se corrente como denominação das “camadas inferiores” da Inglaterra em processo de industrialização.

Dê-se a um grupo uma reputação ruim e é provável que ele corresponda a essa expectativa.

Verifica-se que as crianças marginalizadas são mais propensas à agressividade e, em certo sentido, materializam os estereótipos que lhes são atribuídos, pelo menos até certo ponto.

“Relatórios recentes de psicólogos japoneses demonstram que há uma diferença sistemática entre os escores obtidos nos testes de QI e de realização por crianças que freqüentam as mesmas escolas mas provêm do grupo majoritário ou do grupo dos párias.”9 Isso faz parte das provas cada vez maiores de que crescer como membro de um grupo outsider estigmatizado pode resultar em déficits intelectuais e afetivos específicos.

Parece que adjetivos como “racial” ou “étnico”, largamente utilizados nesse contexto, tanto na sociologia quanto na sociedade em geral, são sintomáticos de um ato ideológico de evitação. Ao empregá-los, chama-se a atenção para um aspecto periférico dessas relações (por exemplo, as diferenças na cor da pele), enquanto se desviam os olhos daquilo que é central (por exemplo, os diferenciais de poder e a exclusão do grupo menos poderoso dos cargos com maior potencial de influência).

Na relação entre estabelecidos e outsiders em Winston Parva, a busca de vantagens econômicas pelos primeiros desempenhava um papel ínfimo. Que outras vantagens incitam os grupos estabelecidos a lutar ferozmente pela manutenção de sua superioridade? Que outras privações sofrem os grupos outsiders, afora as privações econômicas?

Marx desvendou uma verdade importante ao apontar para a distribuição desigual dos meios de produção e, portanto, para a distribuição desigual dos meios necessários à satisfação das necessidades materiais humanas. Mas foi uma meia verdade. Ele apresentou, como raiz principal do confronto de objetivos entre os grupos poderosos e os inferiores, o choque em torno de objetivos econômicos, tais como o de assegurar um abastecimento suficiente de alimentos.

Sem dúvida, no caso extremo dos grupos humanos expostos à fome prolongada, o desejo intenso de comida ou, em termos mais gerais, de sobrevivência física pode realmente ter prioridade sobre todas as outras metas.

A principal privação sofrida pelo grupo outsider não é a privação de alimento. Que nome devemos dar-lhe? Privação de valor? De sentido? De amor-próprio e auto-respeito?

A estigmatização, como um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders, associa-se, muitas vezes, a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido. Ela reflete e, ao mesmo tempo, justifica a aversão — o preconceito — que seus membros sentem perante os que compõem o grupo outsider. Assim, de acordo com a tradição de fofocas da maioria dos japoneses, os burakumin carregam no corpo um sinal físico hereditário da sua inclusão no grupo de párias — um sinal de nascença azulado, abaixo das axilas.11 Isso ilustra muito vividamente a operação e a função das crenças do establishment a respeito de seus grupos outsiders: o estigma social que seus membros atribuem ao grupo dos outsiders transforma-se, em sua imaginação, num estigma material — é coisificado. Surge como uma coisa objetiva, implantada nos outsiders pela natureza ou pelos deuses. Dessa maneira, o grupo estigmatizador é eximido de qualquer responsabilidade: não fomos nós, implica essa fantasia, que estigmatizamos essas pessoas e sim as forças que criaram o mundo.

Mais próxima de nós, a visão das classes trabalhadoras do século XIX como “os grandes mal lavados” é outro exemplo.

Os problemas com que nos confrontamos numa investigação como essa só se evidenciam quando se considera que o equilíbrio de poder entre esses grupos é mutável.


Todavia, a preocupação com os problemas existentes no curto prazo e a concepção do desenvolvimento das sociedades no longo prazo continuam ainda hoje a bloquear a compreensão das longas seqüências de desenvolvimento das sociedades e de seu caráter direcional — de seqüências como o movimento de ascensão e declínio dos grupos.

Do mesmo modo, a herança do antigo Iluminismo tem seu papel nesse bloqueio da compreensão dos processos no longo prazo.

O ideal da racionalidade na condução das questões humanas continua a barrar o acesso à estrutura e à dinâmica das figurações estabelecidos-outsiders, bem como às fantasias grupais de grandeza que elas suscitam, e que são dados sociais sui generis, nem racionais nem irracionais.

Uma vez evidenciado o problema da distribuição das chances de poder que está no cerne das tensões e conflitos entre estabelecidos e outsiders, torna-se mais fácil descobrir um problema subjacente, que costuma passar despercebido. Os grupos ligados entre si sob a forma de uma configuração de estabelecidos-outsiders são compostos de seres humanos individuais. O problema é saber como e por que os indivíduos percebem uns aos outros como pertencentes a um mesmo grupo e se incluem mutuamente dentro das fronteiras grupais que estabelecem ao dizer “nós”, enquanto, ao mesmo tempo, excluem outros seres humanos a quem percebem como pertencentes a outro grupo e a quem se referem coletivamente como “eles”.

Ao tentarmos descobrir por que eles agiam assim, percebemos o papel decisivo que a dimensão temporal ou, em outras palavras, o desenvolvimento de um grupo, desempenha como determinante de sua estrutura e suas características. O grupo de “famílias antigas” de Winston Parva (alguns membros do qual, evidentemente, eram muito jovens) tinha um passado comum; os recém-chegados, não.

Por terem vivido juntas bastante tempo, as famílias antigas possuíam uma coesão, como grupo, que faltava aos recém-chegados.

Ademais, os membros do grupo das “famílias antigas” ligavam-se entre si por laços de intimidade emocional, que incluíam antigas amizades e velhas aversões.

Sem levá-los em conta, não é possível compreender as barreiras que os membros do grupo estabelecido de Winston Parva erguiam quando falavam de si como “nós” e dos recém-chegados como “eles”.

É sintomático do alto grau de controle que um grupo coeso é capaz de exercer sobre seus membros que, durante toda a investigação, não tenhamos ouvido falar sequer uma vez que um membro do grupo “antigo” houvesse quebrado o tabu grupal contra o contato pessoal não profissional com membros do grupo “novo”.

A opinião grupal tem, sob certos aspectos, a função e o caráter de consciência da própria pessoa.

A autonomia relativa de cada pessoa, o grau em que sua conduta e seus sentimentos, seu auto-respeito e sua consciência relacionam-se funcionalmente com a opinião interna dos grupos a que ela se refere como “nós”

A visão, hoje muito difundida, de que um indivíduo mentalmente sadio pode tornar-se totalmente independente da opinião do “nós” [we-group] e, nesse sentido, ser absolutamente autônomo, é enganosa.

O que se destaca de maneira mais acentuada é a maneira como a auto-regulação dos membros de um grupo estabelecido muito coeso está ligada à opinião interna que esse grupo faz de si.

Nesse caso, a susceptibilidade desses indivíduos à pressão do “nós” [we-group] é particularmente grande, pois pertencer a tal grupo instila em seus membros um intenso sentimento de maior valor humano em relação aos outsiders.

Em épocas anteriores, o impacto que a crença de um grupo em sua graça e virtude exclusivas tinha na auto-regulação dos sentimentos e da conduta de cada um de seus membros em relação aos outsiders, mostrava-se mais visivelmente nos grupos dominados por ordens clericais e, portanto, promovia a união contra os outsiders através de uma crença sobre-humana comum. Em nossa época, esse impacto da crença carismática grupal em seus membros tem sua forma mais exemplar no caso das nações poderosas dominadas por establishments de partidos-governos e, portanto, unidas contra os forasteiros por uma crença social coletiva em sua virtude e graça nacionais ímpares.
 Comentário meu: Antigamente era a Religião. Hoje é o Nacionalismo.

A auto-regulação de cada membro pode ser mantida através da participação gratificante no valor humano superior do grupo e da correspondente acentuação do amor-próprio e auto-respeito dos indivíduos, reforçados pela aprovação contínua da opinião interna do grupo e, ao mesmo tempo, pelas restrições impostas por cada membro a si mesmo, de acordo com as normas e padrões grupais. O estudo do grupo estabelecido de Winston Parva, portanto, mostra em pequena escala como o autocontrole individual e a opinião grupal estão articulados entre si.
 Comentário meu: Ele está falando do Nazismo, dos antissemitas.

Devemos a Freud um grande avanço na compreensão dos processos coletivos ao longo dos quais ganham forma as instâncias de autocontrole do homem. O próprio Freud, entretanto, conceituou predominantemente suas constatações de um modo que levou a crer que todo ser humano é uma unidade fechada em si mesma, um homo clausus. Ele reconheceu a capacidade especificamente humana de aprender a controlar e, até certo ponto, moldar os impulsos libidinais maleáveis nas experiências vividas dentro das normas grupais.

Contudo, uma vez formadas, elas lhe pareceram funcionar sozinhas, independentemente dos outros processos grupais em que toda pessoa continua envolvida, desde a infância até a velhice. Como resultado, ele formulou a concepção das funções de autocontrole dos seres humanos — o eu e o supereu ou ideal do eu [ego-ideal], como as denominou — de tal maneira que elas têm a característica de funcionar no que parece ser uma autonomia absoluta dentro do indivíduo.

Por mais que ele tenha contribuído para a compreensão dos laços que unem as pessoas, seu conceito do homem continuou a ser, basicamente, o do indivíduo isolado.

Não é difícil perceber que afirmações como “eu, Pat O’Brien, sou irlandesa” implicam uma imagem do eu e uma imagem do nós. O mesmo acontece com afirmações como “sou mexicano”, “sou budista”, “sou da classe trabalhadora” ou “somos de uma antiga família escocesa”.

Os sonhos das nações (como os de outros grupos) são perigosos.15 Um ideal do nós hipertrofiado é sintoma de uma doença coletiva.
 Comentário: Torcidas de futebol.

Os conceitos aqui expostos como parte de uma teoria da figuração estabelecidos-outsiders, tais como carisma grupal e ideal do nós, podem contribuir para uma avaliação mais adequada dessas relações grupais.

No auge de seu poderio, os grupos dominantes das nações ou das classes sociais e outros agrupamentos de seres humanos são dados a idéias de grandeza.

A própria existência de outsiders interdependentes, que não partilham do reservatório de lembranças comuns nem tampouco, ao que parece, das mesmas normas de respeitabilidade do grupo estabelecido age como um fator de irritação; é percebida pelos membros desse grupo como um ataque a sua imagem e seu ideal do nós. A rejeição e a estigmatização dos outsiders constituem seu contra-ataque. O grupo estabelecido sente-se compelido a repelir aquilo que vivencia como uma ameaça a sua superioridade de poder (em termos de sua coesão e seu monopólio dos cargos oficiais e das atividades de lazer) e a sua superioridade humana, a seu carisma coletivo, através de um contra-ataque, de uma rejeição e humilhação contínuas do outro grupo.

Dentre os aspectos mais reveladores da estratégia dos grupos estabelecidos figura a censura de algumas de suas próprias atitudes usuais. Assim, os párias do sexo masculino não tinham permissão de usar bigodes com as pontas voltadas para cima, já que isso significava uma auto-afirmação.

Do mesmo modo, um escritor norte-americano, não desvinculado do establishment de seu país,17 falou dos intelectuais negros, com toda a inocência, como “ávidos por um gosto de poder”, esquecido de que, desde longa data, os brancos norte-americanos usavam sua própria superioridade como meio de excluir os descendentes de escravos da participação nos instrumentos de poder que monopolizavam.

Processos grupais de longo prazo:
Afirma-se, em geral, que as pessoas percebem as outras como pertencentes a outro grupo porque a cor de sua pele é diferente. Seria mais pertinente indagar como foi que surgiu no mundo o hábito de perceber as pessoas com outra cor de pele como pertencentes a um grupo diferente. Esse problema coloca prontamente em foco o longo processo durante o qual os grupos humanos se desenvolveram em diferentes partes da Terra, adaptaram-se a condições físicas diferentes e, mais tarde, após longos períodos de isolamento, entraram em contato uns com os outros, não raro como conquistadores e conquistados e, portanto, dentro de uma mesma sociedade, como estabelecidos e outsiders.

É provável que algumas das crianças que cresceram no “beco dos ratos” de Winston Parva (tal como era chamado o loteamento pelo grupo estabelecido) tenham sofrido de uma imagem do nós similarmente maculada e por isso se tornado desviantes.

Mesmo num âmbito tão pequeno como o de Winston Parva, algumas dessas características puderam ser observadas. Pareceu útil permitir que o microcosmo de uma pequena comunidade esclarecesse o macrocosmo das sociedades em larga escala e vice-versa. É essa a linha de raciocínio que está por trás do emprego de um pequeno cenário como paradigma empírico de relações estabelecidos-outsiders que, muitas vezes, existem em outros lugares em escala diferente. Nesse cenário, é possível focalizar melhor alguns detalhes do que nos estudos sobre essas relações em cenários mais amplos.

O grupo estabelecido tende a vivenciar essas diferenças como um fator de irritação, em parte porque seu cumprimento das normas está ligado a seu amor-próprio, às crenças carismáticas de seu grupo, e em parte porque a não observância dessas normas por terceiros pode enfraquecer sua própria defesa contra o desejo de romper as normas prescritas. Assim, os outsiders interdependentes, que são mais tolerantes ou apenas suspeitos de serem mais tolerantes no cumprimento de restrições


São vistos pelo grupos estabelecidos como uma ameaça a sua posição, a sua virtude e graça especiais. Essa foi uma das principais razões por que, no caso de Winston Parva, os estabelecidos revidaram com tamanha contundência. Com ou sem razão, eles, como muitos outros grupos estabelecidos, sentiram-se expostos a um ataque tríplice — contra seu monopólio das fontes de poder, contra seu carisma coletivo e contra suas normas grupais. Repeliram o que vivenciaram como um ataque, cerrando suas fileiras contra os recém-chegados, excluindo-os e humilhando-os.

Considerações sobre o método

A Zona 1 era o que se costuma chamar de área residencial de classe média. A maioria de seus moradores a via como tal. As Zonas 2 e 3 eram áreas operárias, uma das quais, a Zona 2, abrigava quase todas as fábricas locais. Em termos de faixas de renda, tipos de ocupação profissional e “classe social”, os habitantes das Zonas 2 e 3 não pareciam marcantemente diferentes. Um observador habituado a avaliar apenas nesses termos a estrutura social de um grupo de vizinhos talvez esperasse constatar que as duas zonas da classe trabalhadora tinham muita coisa em comum, que os moradores se percebiam mais ou menos como iguais e que a principal linha divisória da vida comunitária de Winston Parva, em termos da classificação mútua dos habitantes e das barreiras erguidas contra as relações sociais e a comunicação, situava-se entre a zona da classe média, de um lado, e as duas zonas operárias, do outro.

Mas a figuração encontrada, na verdade, foi diferente. Um levantamento preliminar sugeriu que não só os habitantes de classe média da Zona 1, mas também os moradores operários da Zona 2 consideravam a si mesmos e a seus vizinhos como tendo um status social superior aos da Zona 3.

Os próprios residentes da Zona 3 pareciam aceitar a inferioridade de status localmente atribuída a seu bairro, em comparação com a Zona 2.

Como conseguiam os habitantes da Zona 2 afirmar e sustentar sua superioridade de status?

Não foi difícil encontrar uma resposta provisória. A Zona 2 era um bairro operário antigo, a Zona 3, um bairro novo. Os moradores da Zona 2, em sua maior parte, eram membros de famílias que viviam na região havia bastante tempo, que ali se haviam estabelecido como antigos residentes, que acreditavam fazer parte do lugar e achavam que lhes pertencia. Os moradores da Zona 3 eram recém-chegados que haviam passado a morar em Winston Parva em data relativamente recente, e que continuavam a ser forasteiros em relação aos habitantes mais antigos.

O problema de por que, em certas condições, a “antiguidade” de um grupo é considerada um fator de prestígio e sua presença mais recente, um fator de censura.

Um dos autores trabalhara lá por alguns anos e a conhecia de perto, por experiência pessoal. Ele realizou entrevistas com membros de cada trigésima casa constante do registro eleitoral de todas as três zonas. Entrevistou os líderes das associações beneficentes locais e analisou suas listas de membros. Durante algum tempo, organizou um clube juvenil e lecionou numa escola local. Os autores também puderam servir-se de fichas escolares que mostravam a ocupação e o local de residência de todos os pais de alunos primários de Winston Parva. 

As entrevistas e fichas de registro permitiram compilar dados quantitativos e apresentar alguns deles sob a forma de tabelas estatísticas. Mas os dados quantitativos assim compilados só podiam ser considerados parte das provas necessárias a pesquisas sobre esse tipo de problemas. Podiam ajudar a avaliar as diferentes imagens que os bairros tinham de si mesmos e a postura excludente, relativamente acentuada, que tinham os membros da zona “superior” em relação aos da “inferior”.

Como se constatou, tais alegações, imagens e barreiras à comunicação social não podiam ser explicadas apenas em termos de um ou outro fator quantificável.

Em Winston Parva, logo ficou muito patente que as respostas individuais eram parte integrante das crenças e atitudes comuns, mantidas por várias formas de pressão e controle sociais.

Em outras palavras, elas representavam variações individuais das crenças e atitudes padronizadas que circulavam nessas áreas.

Em comunidades como essas, era de se esperar que, em entrevistas com pessoas relativamente estranhas, os entrevistados fossem mais propensos a exprimir as idéias-padrão dominantes do que quaisquer opiniões individuais que se desviassem desses padrões. Ficou bem claro que, numa comunidade solidamente unida, como a Zona 2, as pessoas ansiavam por apresentar uma postura idêntica e causar a melhor impressão possível nos estranhos.

As opiniões de cada um sobre seu bairro e os bairros vizinhos formavam-se no âmbito de uma troca de idéias contínua dentro da comunidade, no decorrer da qual os indivíduos exerciam considerável pressão uns sobre os outros, para que todos se conformassem à imagem coletiva da comunidade na fala e no comportamento; nesse padrão de controle da vizinhança, as redes familiares mais altamente respeitadas ocupavam uma posição chave: enquanto tinham poder suficiente, agiam como guardiãs da imagem comunitária e das opiniões e atitudes aprovadas.

Naquele contexto social, as inferências feitas unicamente a partir da análise estatística das entrevistas seriam de valor limitado, sem o conhecimento adquirido por meio de uma investigação sistemática, feita por um observador participante devidamente preparado.

Viam a Zona 1 como uma “área de classe mais alta” ou uma “área residencial”, e as Zonas 2 e 3 como “bairros operários”, embora os moradores da Zona 2 vissem sua área como amplamente superior. Contudo, examinando mais de perto, logo se descobria que cada zona tinha seu grupo minoritário.

A minoria da Zona 1 não desempenhava papel algum na imagem do bairro. Nunca foi mencionada, nem nas conversas nem nas entrevistas.

Vez por outra, a minoria da Zona 2 era mencionada por seus residentes, sempre com visível orgulho; ela reforçava sua pretensão de um status superior ao dos vizinhos da Zona 3. Em contraste, a imagem e a reputação da Zona 3 eram enormemente afetadas pela minoria relativamente pequena de “famílias-problema”.

A reputação dos “estabelecidos” era engrandecida por um pequeníssimo número de famílias “socialmente superiores”, enquanto a dos “outsiders” era decisivamente marcada pelas atividades de seu setor “mais baixo”.

A imagem que os estabelecidos, os poderosos setores dirigentes de uma sociedade têm de si e transmitem aos outros tende a se pautar na “minoria dos melhores”, ou seja, tende para a idealização. A imagem dos outsiders, dos grupos relativamente pouco poderosos em comparação com os setores estabelecidos, tende a se modelar na “minoria dos piores”, isto é, tende a estar denegrida.

É frequente se conceituarem os métodos sociológicos como se o único processo cientificamente fidedigno e legítimo fosse a análise estatística. Parecem achar muitas vezes que somente ela é capaz de trazer a certeza impessoal que se espera de uma pesquisa sociológica. As afirmações que não se pautam em medidas de propriedades quantificáveis são comumente descartadas como “fundadas em impressões”, “meramente descritivas”, ou “subjetivas”.

O empobrecimento da sociologia como ciência que resultou da avaliação vigente dos métodos sociológicos — do pressuposto de que basta usar métodos estatísticos para obter respostas fidedignas aos problemas sociológicos — é bastante óbvio. Ele levou a uma situação em que vastas áreas de problemas sociologicamente relevantes permanecem inexploradas ou, quando exploradas, protegidas da pecha de “meramente descritivas” (por não serem estatísticas) apenas pela presença de um grande nome (como no caso da maior parte do trabalho empírico de Max Weber).

Por conseguinte, o uso desses métodos de análise e sinopse das configurações ainda se restringe, predominantemente, ao acaso dos talentos individuais.

Só é possível superar as limitações das pesquisas sociológicas centradas em métodos estatísticos quando os pesquisadores treinados para discernir e manipular fatores ou variáveis isolados aliam-se (ou têm, eles próprios, essa qualificação) a pesquisadores formados para discernir e, ao menos conceitualmente, manipular as configurações como tais — especializados tanto na sinopse precisa quanto na análise precisa.

Os modelos das configurações, dos padrões ou estruturas sociais podem ser tão precisos e fidedignos quanto os resultados da mensuração quantitativa de fatores ou variáveis isolados.

O aparente caráter conclusivo de toda pesquisa estatística e o caráter aberto e evolutivo da pesquisa configuracional, como elos numa cadeia, têm uma estreita relação com algumas diferenças fundamentais entre o tipo de reflexão exigido por uma análise puramente estatística e o exigido por uma análise sociológica.

Numa análise puramente estatística, os “fatores” ou “variáveis”, bem como suas propriedades quantitativas, são tratados como se de fato fossem independentes de seu lugar e função numa configuração e as correlações estatísticas.

A análise sociológica baseia-se no pressuposto de que todos os elementos de uma configuração, com suas respectivas propriedades, só são o que são em virtude da posição e função que têm nela.

Assim, a análise ou separação dos elementos é meramente uma etapa temporária numa operação de pesquisa, que requer a complementação por outra, pela integração ou sinopse dos elementos, do mesmo modo que esta requer a suplementação pela primeira; aqui, o movimento dialético entre análise e síntese não tem começo nem fim.

Era impossível inferir de uma mera análise quantitativa, por exemplo, que para as pessoas de uma área de classe média, para seu estilo de vida, para as imagens que elas tinham de sua zona e das demais, a existência de uma minoria operária em seu próprio bairro não tinha a menor importância, ao passo que, tanto para as condições de vida quanto para as imagens da nova área operária, sua minoria era de extrema significação.

Muitas vezes, a utilização atual das estatísticas parece implicar que, quanto maiores as dimensões numéricas, maior a importância. No caso das minorias de Winston Parva, como em muitos outros, a significação sociológica de modo algum era idêntica à significação estatística.

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