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8.1.18

VERÍSSIMO, Érico. Um certo capitão Rodrigo. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 184 p.

— Não. Religião nunca me fez falta. — Há pessoas que só se lembram da Virgem quando troveja. — Quando troveja me lembro do meu poncho.

— Mas vosmecê nunca pensa em Deus? — Uma vez que outra. — Não reconhece que Ele fez o mundo e todas as pessoas que há no mundo? — Se Deus fez o mundo e as pessoas, Ele já nos largou, arrependido. — Não diga tamanho absurdo! Se Ele tivesse largado, tudo andava de pernas para o ar. — E não anda?

— Paciência. Pode ser que um dia vosmecê mude. Deus é grande. — E o mato é maior, padre. É o que esses caboclos aprendem na luta dura desde pequeninhos. Não podem confiar em Deus e ficar parados. Quem fizer isso acaba degolado ou furado de bala.

— O melhor mesmo é vosmecê ir embora de Santa Fé o quanto antes. — Por quê? — Porque sim. — Que é que há contra mim? Ricardo hesitou por um instante, acariciou nervosamente o cabo da faca e disse: — Vosmecê não tem o nosso jeito. Sou um homem muito vivido e vejo logo quando uma pessoa pode se dar aqui e quando não pode.

— Conheço um homem até pela maneira como ele anda vestido. Esse seu lenço vermelho é um sinal de fanfarronice.

— Nestes papéis, coronel. Com licença de vosmecê, aqui está a minha fé de ofício. Tirou um rolo de papéis de dentro da túnica e apresentou-os ao estancieiro, que o capitão tirou do bolso das bombachas um estojo preto e dramaticamente apresentou-o ao outro: — E se isto também pode dizer alguma coisa em meu favor... — Que é isso? — Faça o obséquio de abrir. Ricardo Amaral tomou do estojo, com um pouco de má vontade, abriu-o e viu contra um fundo de veludo roxo uma medalha. Reconheceu a cruz da Ordem dos Militares. Não pôde esconder sua surpresa, e seu rosto iluminou-se de repente, como se a condecoração irradiasse luz.

Eram cópias de ordens do dia de diversos generais que Ricardo Amaral conhecia e nelas havia elogios ao cap. Rodrigo Severo Cambará pelo seu comportamento em ação.

— Sempre desconfiei de homem que toca violão.

Havia nele qualquer coisa de lerdo e descansado, como se de tanto carretear ele tivesse tomado o jeito dos bois.

Às vezes ficava irritado com Paula, porque ela não era nova, bonita e limpa como Bibiana. A chinoca continuava a deixar-se usar num silêncio submisso e sempre assustado.

Porque sempre lhe parecera que o único amor digno dum homem era esse que apenas pede cama. O amor de fazer ou cantar versos e mandar flores, esse amor de doer no peito, de dar saudade era amor de homem fraco.

Para a Igreja, os litorâneos, os habitantes de lugares como Porto Alegre, Viamão, Rio Grande e Pelotas, ofereciam uma seara mais rica e segura que a de outras zonas da Província. A Igreja Católica precisava de estabilidade e havia nessas cidades, vilas e povoados uma hierarquia nítida — nobreza, clero e povo —, uma divisão muito conveniente ao trabalho de evangelização. Quanto às populações das estâncias e charqueadas, o problema era diferente e infinitamente mais complicado. Aquela vida agreste e livre convidava à violência, à arbitrariedade e à insubmissão. As charqueadas eram focos de banditismo. O trabalho das estâncias como que nivelava o patrão ao peão e ao escravo.

Muitas vezes o estancieiro saía a camperear ombro a ombro com aqueles numa faina igualizadora que oferecia certos perigos, pois criava o risco de negros e caboclos quererem gozar das mesmas prerrogativas que seus senhores.

O pe. Lara sabia que todos os homens tinham sido criados à imagem e semelhança do Senhor. Mas reconhecia também que, para maior facilidade e eficiência do trabalho dos sacerdotes de Deus na Terra, era necessário que houvesse ordem, um sentido de hierarquia, um escalonamento nítido da sociedade. Porque a desordem era inimiga da religião, e se os homens não reconhecessem nenhum princípio de autoridade na vida temporal, como haviam de reconhecê-lo na vida espiritual?

Por outro lado, estava também convencido de que todas as ideias de liberdade e igualdade traziam no seu âmago sementes de ateísmo e anarquia, tanto que as conspirações republicanas eram feitas em geral pela maçonaria.

Sabia que era uma espécie de tradição entre os Amarais fazer filhos nas escravas, produzir mulatos e mulatas, que por sua vez depois se cruzavam com brancos, índios ou pretos. Os brancos gostavam muito das índias. O padre ouvira dizer que as mulheres índias se entregavam aos índios por obrigação, aos brancos por interesse e aos negros por prazer.

E no tom de sua voz Rodrigo percebia um certo orgulho, como se ele estivesse sempre a pensar assim: sou um Amaral. Eu mando. Sou um Amaral. Eu mando.

D. Arminda chorava de mansinho e seus olhos estavam vermelhos e tristes. Ao pé da imagem de Nossa Senhora da Conceição ardia uma grande vela de cera que Bibiana mandara vir de Rio Pardo para pagar uma promessa... Os noivos foram morar numa casa de madeira que Juvenal ajudara Rodrigo a erguer à entrada do povoado, do lado nascente. 

Rodrigo gozou a sua noite de núpcias como quem, depois dum longo período de abstinência, saboreia um jantar especial, com churrasco gordo e bom vinho; mas não se tratava duma refeição comum, dessas em que a gente come em mangas de camisa, à vontade, mas sim duma ceia de cerimônia... por exemplo, no Paço do Governo, no meio de figurões, numa mesa com muitos candelabros e talheres de prata, louça fina e mulheres de maneiras fidalgas — uma ceia enfim em que o conviva do campo tem de refrear o apetite, comer devagar, evitando qualquer gesto que possa ocasionar a quebra dum copo, dum prato ou da etiqueta.

Para Pedro Terra água de cheiro, brincos, espelhos e enfeites eram coisas inúteis de “gente que não tem mais o que fazer”. Os seus ditados — que ele repetia sempre que havia oportunidade, como para que servissem de lição à filha — davam uma ideia de sua maneira de avaliar as pessoas e as coisas. “Mulher que muito ri não pode ser boa coisa.” “Primeiro a obrigação, depois a diversão.”

Bibiana como que se desmanchava aos poucos ante seus olhos sempre gulosos. A rigidez de suas carnes dera lugar a uma flacidez descorada e ela de repente como que se fizera mais adulta, mais mulher. E ele, que já não se podia entregar aos mesmos excessos amorosos — pois além de ser obrigado a cuidados especiais com a esposa já começava a achá-la menos atraente —, ficava irritado com a situação e agora já pensava em outras mulheres.

— Se vosmecê fosse o criador do mundo, como é que fazia as coisas e as pessoas? Rodrigo apanhou um seixo, fez pontaria numa árvore e arremessou-o, errando o alvo. — Se eu fosse dono do mundo, fazia algumas mudanças... — Por exemplo... — pediu o padre. — Acabava com essa história de trabalhar... — Sim, e depois? — Fazia os filhos virem ao mundo de outro jeito. Eu vi o que a Bibiana sofreu. É medonho. O vigário sorria. Aquelas palavras, partidas dum egoísta, não deixavam de ter seu valor. — E depois? — Dividia essas grandes sesmarias de homens como o coronel Amaral. — Dividia? Como? Pra quê? — Dividia e dava um pedaço pra cada peão, pra cada índio, pra cada negro. — Não vá me dizer que ia libertar os escravos... — E por que não? Acabava com a escravatura imediatamente.

— Cada qual luta a seu modo, meu filho. Cada qual luta por um ideal. Houve homens que lutaram para libertar o Brasil dos portugueses. — Mas os galegos estão aí mesmo — retorquiu Rodrigo. — Nas tropas os oficiais portugueses mandam mais que os brasileiros. No fundo a independência não mudou nada.

— Conheci muitos padres por esse mundo velho que tenho corrido. Eles nunca estão contra o governo. — A Igreja não é revolucionária — exclamou o vigário. — A Igreja não é lugar de conspirações. Ela representa o poder espiritual, que está acima, muito acima do temporal.

Quando vejo um negro que baixa a cabeça quando gritam com ele, ou quando vejo um escravo surrado, o sangue me ferve. Depois que vi certos negros brigando no nosso exército contra os castelhanos... Barbaridade!... se eles não são homens, então não sei quem é...

— Meu filho, aprenda uma coisa. Por que é que a Igreja tem sobrevivido através de todos estes séculos? Por quê? Passam os reis, os conquistadores, os generais, os filósofos... passa tudo. Mas a Igreja fica. Alguns pensam que é porque ela é de origem divina. — Piscou um olho e pegou na fralda da camisa do outro. — Mas eu acho, e Deus me perdoe a irreverência, que é um pouco porque nós os sacerdotes somos realistas. Realistas, está ouvindo? Vosmecê sabe o que é um realista? — Um homem do lado do rei?

Rodrigo ficou junto da porta da rua olhando a noite, com um desejo de montar a cavalo e sair para o campo. Santa Fé era triste. Havia ali poucas diversões. A vila mais próxima, Cruz Alta, ficava muito longe... Abriu a boca num bocejo. E de repente — quase num susto — sentiu-se mais gordo, menos enérgico, um pouco molenga. Fazia tempo que não brigava, que não se movimentava. Aquela vida de balcão, que lhe enferrujava os membros, era de matar um cristão de aborrecimento. Por que se tinha ele metido naquilo? Por quê?

Bibiana ficou triste, mas não disse nada. Sua tristeza entretanto não durou, porque começou a entreter-se com a filha, que era ainda mais bonita que Bolívar e tinha os olhos azuis.

O melhor que ela tinha a fazer era fingir que não sabia de nada. Contanto que ele não fosse embora, que ela pudesse tê-lo a seu lado — contanto que ele continuasse a ser o seu marido, tudo estava bem.

De outra feita viu dois homens que em pleno campo atacavam um viajante. Rodrigo não conhecia nenhum deles, mas achou que não podia passar de largo. "Dois contra um é covardia!", gritou. Saltou do cavalo, puxou a adaga e entrou na luta. Voltou para casa trazendo o desconhecido que livrara dos assaltantes. Estavam ambos com as mãos e o rosto cheios de talhos de faca. Chegaram sangrando mas sorrindo, recordando a briga e dando grandes risadas. Fecharam-se na sala da venda e tomaram juntos uma bebedeira.

Um fogo ardia no peito de Rodrigo, pondo-lhe um formigueiro em todo o corpo. Era uma sensação de angústia, um desejo de dar pontapés, quebrar cadeiras, furar sacos de farinha, esmagar os vidros de remédio e sair dizendo nomes a torto e a direito. Quando o caboclo lhe pedira “uma réstia de cebola”, ele de repente vira o horror, o absurdo da vida que levava.

“Capitão! Onde está o capitão?” Cabeças se voltaram para todos os lados, procurando. Rodrigo, porém, não aparecia. “Por onde andará esse diacho?”, perguntou o vigário a si mesmo. Ninguém sabia. Decerto está na casa da china — refletiu o padre com melancolia e uma sombra de remorso. Tinha consciência de haver contribuído para a desgraça de Bibiana. Não podia compreender como um homem branco e limpo pudesse deixar-se enfeitiçar por uma rapariga que pouco faltava para ser mulata.

Nunca em toda a sua vida ele dormira com uma mulher tão loura, tão branca e tão limpa.

Dizia-se que quem realmente mandava no governo era o irmão do presidente, o juiz de direito de Porto Alegre, um homem que os liberais acusavam de retrógrado, vingativo e autoritário. Todos haviam recebido o novo presidente com simpatias e esperanças, mas ao cabo de pouco tempo ele pusera as unhas de fora: começara a perseguir os liberais e a encher as cadeias de inimigos políticos.

Quando o povo perde o sentido de disciplina e de ordem, quando começa a desrespeitar a autoridade, então é porque o desastre está iminente... O pior de tudo era que, como sempre, a conspiração se fazia na maçonaria.

— E onde é que eles metem o dinheiro do imposto? — perguntou um dos homens que escutavam Juvenal. — Metem no rabo desses caramurus do inferno! — respondeu, azedo, um velhote de chiripá seboso. Os outros o miraram de soslaio sem dizer nada. — Com tudo isso que pagamos — disse Chico Pinto —, não temos nem escolas pros nossos filhos.

Mas me dá raiva de ver que estamos sustentando o luxo da Corte. O nosso dinheirinho é pra encher a barriga desses condes, duques e barões de meia-pataca!

O pe. Lara sabia como era custoso obter informações certas. As pessoas dificilmente contavam as coisas direito. Mentiam por vício, por prazer ou então alteravam os fatos por causa de suas paixões. Cenas da vida cotidiana que se tinham passado sob o seu nariz, ali mesmo na praça de Santa Fé, eram depois relatadas na venda do Nicolau duma maneira completamente diferente. Como era então que a gente podia ter confiança na história?

Queria vê-lo mais uma vez, só uma vez. Deus não ia ser tão mau que não lhe permitisse essa alegria. Ela já nem ousava pedir o impossível: que a guerra terminasse e Rodrigo voltasse para casa. Isso era demais. Bibiana sabia que as coisas boas nunca aconteciam. Por isso nem pedia.

— Mas não há nenhum desdouro. Isto é uma guerra entre irmãos. — São as mais brabas, padre, são as mais brabas.

— Era um homem impossível.

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