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9.5.18

SOUZA, Jessé. A Cegueira do Debate Brasileiro sobre as Classes Sociais. Interesse Nacional, Vol. 7, No. 27, 2014. (pp. 35-57).

Minha tese é que o tema da produção e reprodução das classes sociais no Brasil – que poderia estruturar uma concepção verdadeiramente crítica sobre o Brasil contemporâneo – é dominado por uma leitura “economicista” e redutora da realidade social

Vamos examinar, na primeira parte deste texto, a obra recente de dois dos mais festejados e reconhecidos economistas brasileiros, os professores Marcio Pochmann1 e Marcelo Néri2, para tentar comprovar nossa hipótese. O ponto talvez mais relevante de toda a pesquisa do professor Pochmann para a nossa finalidade, aqui, é a tese de que todo o movimento positivo da pirâmide social brasileira, na primeira década do século XXI, na verdade, envolveu postos de trabalho que se encontram na base da pirâmide social.

O trabalho de Néri, assim como o de Pochmann, é também o trabalho de um virtuoso no uso de dados estatísticos.

Ambos, inclusive, louvam os mesmos aspectos principais deste fenômeno recente que são, para os dois, a expansão do emprego formal com carteira assinada4, o potencial de mobilidade ascendente acompanhado de inclusão no mercado de bens e consumo5 e a diminuição da abissal desigualdade brasileira6. Até os fatores causais dessa mudança são percebidos por ambos do mesmo modo, na medida em que os ganhos de salário real e o aumento real do salário mínimo, por um lado, e o sucesso do Bolsa Família e do microcrédito, por outro lado, são compreendidos como elementos decisivos.

Afora isso, as análises de ambos possuem os mesmos pontos fortes e fracos: excelente tratamento estatístico dos dados, por um lado, e carência de qualquer força explicativa mais profunda do fenômeno analisado, por outro. A única diferença efetivamente observável é que Pochmann enfatiza o fato de que estamos falando da base, da classe trabalhadora, do “setor de baixo” da população brasileira, enquanto Néri enfatiza o caráter “mediano” e ascendente deste mesmo grupo

Efetivamente, a construção do conceito de uma “nova classe média” por Marcelo Néri carece de qualquer reflexão aprofundada. Néri simplesmente toma o “rendimento médio” como indicador daquilo que ele chama de classe C ou “nova classe média”.

Em seguida imaginando, com isso, contornar todas as dificuldades desta noção, diz que não está falando de “classe social”, supostamente para tranquilizar os “sociólogos”, mas sim de “classes econômicas”8. O conceito de “classe econômica” é absurdo de fio a pavio, já que ou pressupõe que as determinações econômicas são as únicas variáveis realmente importantes para o conceito de classe – o que eu suponho seja efetivamente o caso, ainda que o autor não tenha a coragem de admitir9 –, ou, caso contrário, deveria simplesmente se referir a “faixas de renda” e não a “classes”

Economicismo da distribuição e da produção

Pochmann compartilha todos os fundamentos essenciais da análise de Néri. Pochmann acrescenta, em relação a Néri, um estudo mais detalhado das “ocupações” que ganharam dinamismo no último momento econômico e confere menos ênfase aos dados de consumo.

Assim, poderíamos dizer, utilizando as subdivisões consagradas por Karl Marx acerca da esfera econômica, que Néri pratica um “economicismo” da “distribuição”, enquanto Pochmann pratica um “economicismo” da “produção”. Mas, o principal, o “economicismo”, ou seja, a crença explícita ou implícita, de que a variável econômica por si só esclarece toda a realidade social está presente nos dois autores e contamina todas as suas hipóteses e conclusões.

Capital cultural

A onde reside a “cegueira de toda forma de economicismo”? Para mim, reside no fato de não perceber que o capital econômico não é única determinação importante da vida social. Ao contrário, sem, por exemplo, a percepção dos capitais cultural e social, o próprio capital econômico se torna incompreensível. A faceta mais importante do “capital cultural” é o fato de ele ser uma “incorporação”, literalmente, “tornar-se corpo”, de toda uma forma de se comportar e de agir no mundo, a qual é “compreendida” por todos de modo inarticulado e não refletido.

Assim, uma família de “classe média”, que tem menos capital econômico que a “classe alta”, só pode assegurar a reprodução de seus privilégios – como empregos de maior prestígio e salário, seja no mercado seja no Estado – se a família possui algum capital econômico para “comprar” o “tempo livre” dos filhos, que não precisam trabalhar cedo como os filhos das classes populares, para o estudo de línguas ou de capital cultural técnico ou literário mais sofisticado.

Ao mesmo tempo, a competição social não começa na escola. Para que possamos ter tanto o “desejo” quanto a “capacidade” de absorção de conhecimento raro e sofisticado, é necessário ter tido, em casa, na socialização com os pais ou quem ocupe esse lugar, o estímulo “afetivo”

Os filhos das classes médias, com grande probabilidade, possuem esses “estímulos” emocionais e afetivos, ou seja, possuem esse “capital cultural”, o que irá garantir a sua reprodução de classe como “classe privilegiada” em dois sentidos. Em primeiro lugar, vão chegar como “vencedores” na escola e depois no mercado de trabalho e ocupar espaços que as “classes populares” – classe trabalhadora e “ralé” – não poderão alcançar. Em segundo lugar, reproduzem também a “invisibilidade” do processo social de produção de privilégios – que se realizam na privacidade dos lares – e que podem “aparecer”, posto que sua gênese é encoberta como “mérito individual” e, portanto, como “merecimento” dos filhos das classes médias.

Que o “privilégio” apareça como “merecido” é a forma especificamente capitalista e moderna de legitimação da desigualdade social. A “cegueira” do economicismo é, portanto, dupla: ela é cega em relação aos aspectos decisivos que reproduzem todos os privilégios e é cega, também, em relação à falsa justificação social de todos os privilégios.

O economicismo é incapaz até de perceber adequadamente o próprio capital econômico. A reprodução das classes altas também depende em boa medida de outros capitais.

Ao “rico bronco” estão vedadas as relações com uma terceira forma importante de capital, que é o “capital social de relações pessoais”.

Para além do economicismo, desafio a que nos propusemos nas duas pesquisas que redundaram em dois trabalhos publicados subsequentemente: um trabalho sobre os “muito precarizados” socialmente, que chamamos provocativamente de “ralé”13, e o trabalho sobre os “batalhadores”14, ou seja, os também precarizados socialmente, mas com maiores recursos e possibilidade de ascensão social.

Afinal, o que é que faz com que alguns ascendam e outros não?

A meu ver, o que há de novo e inédito no estudo dos desclassificados brasileiros é, antes de tudo, a percepção de que eles formam uma “classe social específica”15, com gênese, reprodução e “futuro provável” semelhante. Tanto o senso comum como a ciência dominante entre nós deixam de perceber essa classe “enquanto classe” ao fragmentá-la ao ponto de torná-la irreconhecível.

Essa classe é, portanto, “moderna” posto que formada pela incapacidade estrutural, na sua socialização familiar – sempre de classe – de dispor dos estímulos afetivos e das pré-condições psíquicas, cognitivas e emocionais que possibilitam a incorporação do “conhecimento útil” necessário à reprodução do capitalismo competitivo.

Como o economicismo, arrogantemente míope, parte do indivíduo sem passado, já adulto e igual a todos e, portanto, sem classe, esta questão central sequer é percebida como relevante ainda que ela vá decidir, inclusive, que tipo de sujeito econômico será criado pelas distintas heranças de classe. O “capital cultural” é constituído por ambas as coisas: tanto as pré-condições afetivas e psíquicas para o aprendizado; quanto pelo aprendizado em si do conhecimento julgado útil.

Batalhadores e ralé

As classes do privilégio exploram esse exército de pessoas disponíveis a fazer de quase tudo. Desde o motoboy que entrega pizza ao lavador de carros, ao trabalhador que carrega a mudança nas costas, à prostituta pobre que vende seu corpo para sobreviver, ou ao exército de serviçais domésticos que faz a comida e cuida dos filhos da classe média e alta que, assim, pode se dedicar a estudos ou trabalhos mais rentáveis.

É este tempo “roubado” de outra classe que permite reproduzir e eternizar uma relação de exploração que condena uma classe inteira ao abandono e à humilhação, enquanto garante a reprodução no tempo das classes do privilégio16. “Luta de classes” não é apenas a “greve sindical” ou a revolução sangrenta nas ruas que todos percebem. Ela é, antes de tudo, o exercício silencioso da exploração construída e consentida socialmente.

“Ascender socialmente” só é possível a quem logra incorporar as pré-condições que o capitalismo atual pressupõe para a crescente incorporação de distintas formas de conhecimento e de capital cultural como “porta de entrada” em qualquer de seus setores competitivos. A “fronteira” entre “ralé” e “batalhadores” – a qual é sempre fluida na realidade concreta – está situada precisamente na possibilidade da incorporação pelos batalhadores dos pressupostos para o aprendizado e o trabalho que faltam à “ralé”.

Dotar a vida de sentido

O domínio permanente de classes sobre outras exige que as classes dominadas se vejam como “inferiores”, preguiçosas, menos capazes, menos inteligentes, menos éticas, precisamente o que reencontramos em todas as nossas entrevistas. Se o dominado socialmente não se convence de sua inferioridade não existe dominação social possível.

Nós acrescentamos – à dimensão bourdieusiana “utilitarista” da teoria dos capitais que não se reduzem ao capital econômico – a dimensão “valorativa” do que as sociedades modernas julgam ser a “boa vida”. É a noção “prática” de “boa vida” que define o que é a “virtude” e, portanto, o que perfaz um indivíduo digno de respeito ou de desprezo.

Utilizamos a reconstrução do filósofo social canadense Charles Taylor. Para Taylor, assim como para Max Weber20, julgamos socialmente uns aos outros baseados nas figuras do “produtor útil” e da “personalidade sensível”. O “efeito de distinção” produzido pela noção implícita de “personalidade sensível” foi a base do estudo mais brilhante de Bourdieu acerca das lutas de classe na França.

Nos nossos estudos das classes populares brasileiras procuramos tornar operacional o conceito de “dignidade” do produtor útil. “Dignidade”, aqui, é um “conjunto de características psicossociais incorporadas praticamente” afetivas, emocionais e cognitivas, que fazem com que tanto a “autoestima” pessoal quanto o “reconhecimento” social sejam possíveis. É essa “seleção prática” que qualquer entrevista de emprego no mercado ou qualquer prova de concurso público procura fazer.

As classes populares não são apenas despossuídas dos capitais que pré-decidem a hierarquia social. Paira sobre as classes populares também o fantasma de sua incapacidade de “ser gente” e o estigma de ser “indigno”, drama presente em literalmente todas as entrevistas. As classes com essa “insegurança generalizada”, como a “ralé” e boa parte dos “batalhadores”, estão divididas internamente entre o “pobre honesto”, que aceita as regras do jogo que o excluem, e o “pobre delinquente”, o bandido, no caso do homem, e a prostituta, no caso da mulher.

Assim, as classes do privilégio não dispõem apenas dos capitais adequados para vencer na disputa social por recursos escassos. Elas possuem também a “crença em si mesmo”, produto de uma autoconfiança de classe.

As classes populares, ao contrário, não dispõem de nenhum dos privilégios de nascimento das classes média e alta. A socialização familiar é muitas vezes disruptiva, a escola é pior e muitas vezes consegue incutir com sucesso “insegurança” na própria capacidade23, os exemplos bem-sucedidos na família são muito mais escassos, quando não inexistentes, quase todos necessitam trabalhar muito cedo e não dispõem de tempo para estudos, o alcoolismo, fruto do desespero com a vida, ou o abuso sexual sistemático são também “sobrerrepresentados” nas classes populares.

Socialização religiosa

Daí que os membros da “ralé”, que analisamos no nosso livro anterior sobre essa classe, diziam repetidamente que “fitavam” o quadro negro por horas a fio sem aprender. Essa “virtude” não é natural, como pensa o economicismo, mas um “aprendizado de classe”. Por outro lado, sem pensamento prospectivo – ou seja, a visão de que o futuro é mais importante que o presente –, não existe sequer a possibilidade de condução racional da vida pela impossibilidade de cálculo e de planejamento da vida pela prisão no “aqui e agora”.

No contexto das classes populares, nosso estudo dos batalhadores se concentrou na determinação das fronteiras que os separam da “ralé”, por um lado, e da classe média verdadeira, por outro. Observamos, por exemplo, fontes importantes de “autoconfiança” individual e de solidariedade familiar baseada na socialização religiosa, temas negados por estudiosos conservadores24. O tipo de religiosidade pentecostal, crescentemente importante nas classes populares brasileiras, tende a ser, nos “batalhadores”, dominado pelas denominações mais “éticas” – ao contrário da “ralé”, na qual predominam as denominações mais “mágicas” do pentecostalismo – no qual a “regulação racional da vida cotidiana” e a “crença na própria capacidade” passam a ser o valor máximo25. Isso implica, nos melhores casos, a possibilidade de se conquistar tardiamente estímulos morais e afetivos que, nas classes do privilégio, é dado pelo horizonte familiar em tenra idade.

Incorporação dos pressupostos emocionais

Assim, do mesmo modo que a não incorporação familiar, escolar e social dos pressupostos de qualquer aprendizado e trabalho moderno é o que produz e reproduz a ralé, os “batalhadores” representam a fração das classes populares que lograram sair deste círculo vicioso. Como as fronteiras, aqui, são muito fluidas, isso significa que não existe “classe condenada” para sempre. Com condições políticas e econômicas favoráveis, os setores que lograram incorporar, seja por socialização religiosa tardia, seja por pertencerem a famílias comparativamente mais bem estruturadas – malgrado o ponto de partida desvantajoso comum a todas as classes populares –, a incorporação das pré-condições para o desempenho do papel social do “trabalhador útil”, podem ascender socialmente.

O economicismo é, portanto, cego em relação tanto à “estrutura social”, que implica a consideração de capitais que não se restringem ao econômico, como é cego em relação ao ponto verdadeiramente decisivo em relação às classes sociais: a forma “velada” e “encoberta” de como as classes sociais são produzidas e reproduzidas. Se o economicismo é incapaz de perceber a gênese e a reprodução das classes, ele é incapaz de compreender qualquer fato realmente importante em relação à dinâmica das classes sociais.

Ele pode até “falar” de classes sociais, mas sua compreensão deste fenômeno tão decisivo e central difere muito pouco da forma como o senso comum (não) percebe as classes.

As manifestações de junho e a cegueira política das classes

O economicismo, como narrativa social dominante, não esconde apenas as reais condições da luta de classe social e econômica entre nós. Ela impossibilita também a percepção adequada da política

A grande fraude e a grande mentira das “jornadas de junho” são a impressão de que o “vilão” está no Estado, e a “sociedade”, engajada e politizada, é o “mocinho”.

Mas, na verdade, quem até agora ganhou e colheu frutos com a “primavera brasileira” foram as forças mais conservadoras do país. Como isto se explica? Como tantos se deixam enganar?

Nos primeiros dias, uma aliança entre estudantes e “batalhadores” da classe trabalhadora precária, que tratamos mais acima neste texto, foi a grande responsável por uma pauta de reivindicações em consonância com os interesses das classes populares.

No entanto, o dia 19 de junho – fato comprovado pelas pesquisas do Ibope feitas com os manifestantes em dimensão nacional29 – foi um ponto de inflexão fundamental que ajuda a esclarecer a força narrativa e institucional do pacto conservador brasileiro contemporâneo. Foi a partir deste dia que as manifestações se tornaram massificadas e ganharam todo o apoio da mídia nacional, assumindo a “classe média verdadeira” – os 20% mais escolarizados e de maior renda, segundo a pesquisa – de modo claro e inconteste o protagonismo do movimento.

Como toda classe privilegiada, a classe média tem interesse em “esconder as causas do privilégio injusto”.

O privilégio da classe média se baseia, como vimos acima, na apropriação de capital cultural altamente valorizado e indispensável para a reprodução de mercado e Estado. Este tipo de capital se materializa, por exemplo, no conhecimento oferecido nos cursos universitários de prestígio, nas pós-graduações, no conhecimento de línguas estrangeiras, etc. Mais importante ainda é perceber que o capital cultural não são apenas títulos escolares, mas, antes de tudo, o aprendizado na socialização familiar desde tenra idade de certas “disposições invisíveis para o comportamento competitivo”.

Classe média se imagina como radical, no Brasil

Essas disposições são transmitidas pelos pais aos filhos como uma “herança cultural”: ensina-se aos filhos a disposição para o autocontrole, para a disciplina, para o pensamento prospectivo (que percebe o futuro como mais importante que o presente) ou ainda para a capacidade de concentração. Em seu conjunto, essas disposições serão o fundamento do sucesso escolar e, depois, no mercado de trabalho.

Como essa transmissão é “invisível”, posto que “naturalizada” e realizada no interior dos lares, a classe média tende a se acreditar como a classe do “milagre do mérito individual”, conquistado pelo esforço, e não por privilégios de nascimento. A classe média é a classe da “meritocracia” por excelência, retirando dessa falácia sua “dignidade” específica.

Como dizia Max Weber, todas as classes dominantes em todo lugar e em todas as épocas não querem apenas usufruir os privilégios que são a base de sua felicidade. Elas querem também saber que “têm direito aos privilégios”. Assim, é necessário tornar invisível todos os privilégios de nascimento, que possibilitam, por exemplo, sua transformação no “milagre do mérito individual”.

As conquistas sociais das democracias europeias foram fruto das lutas das classes trabalhadoras

Mas, no Brasil, uma classe privilegiada, cujo interesse primeiro é na reprodução do mundo como ele é, adora se imaginar como “radical” e agente da mudança. É isso que é necessário esclarecer e compreender, posto que é isso que nos singulariza.

Toda sociedade moderna produz um “mito”, uma espécie de “conto de fadas para adultos” que distorce a realidade tanto quanto a falácia da meritocracia para justificar a dominação social.

No Brasil, esse “conto de fadas” assume a forma da oposição mercado/Estado.

Sérgio Buarque foi o primeiro a perceber o “brasileiro” como um tipo singular, sem pertencimento de classe – como se o brasileiro do Leblon fosse o mesmo do complexo do alemão – e chamá-lo de “homem cordial”. O “homem cordial” é emotivo e prefere os amigos à lei nesta leitura. Interessante é que Buarque vai associar o “homem cordial” ao Estado, supostamente patrimonial e corrupto, e principal obstáculo à modernização brasileira. Com Raymundo Faoro e o seus “donos do poder”, esta mesma perspectiva contrapõe de modo decidido o mercado como a “virtude” e berço da democracia, e o Estado como “vício”, sendo só entrave, berço da ineficiência e da corrupção. É esta perspectiva de Faoro que produziu o “conto de fadas” dominante do Brasil moderno.

Não se compreende as ideias que dominam o imaginário social de uma sociedade sem compreender que elas são sempre, antes de tudo, ideias difusas no meio social que são articuladas por intelectuais. Para que essas ideias possam, então, conquistar as universidades, as escolas, os partidos, a mídia e ganhar espaço para exercer influência e se institucionalizar, têm que estar associadas a interesses poderosos.

Mercado “virtuoso”, Estado “corrupto”

Para tocar no tema central das manifestações, não existe corrupção sistemática no Estado sem que seja provocada por interesses de mercado.

Nada mais natural que mercado e Estado constituam a “semântica possível” de uma luta de classes encoberta, já que, nas sociedades modernas, a proteção às classes dominadas tem sido historicamente tarefa do Estado, por exemplo, garantindo educação e saúde mesmo para os mais pobres. É de interesse dos “endinheirados”, no entanto, que todas as dimensões da vida social fiquem à mercê do interesse de lucro.

Temos um capitalismo selvagem e concentrador, um debate público superficial e pobre como as histórias infantis, uma das sociedades mais desiguais e perversas do planeta e a raiz dos problemas brasileiros é visto em um espantalho: o Estado, supostamente só ele corrupto e ineficiente.

A classe média que foi em massas às ruas a partir do dia 19 de junho e que foi a responsável pela mudança de pauta das demandas por melhor transporte, escolas e saúde, demandas típicas das classes populares, em favor das suas demandas centralizadas nas denúncias de corrupção – sempre estatal e personalizada –, na verdade, agiu tanto como “tropa de choque” do interesse dos endinheirados, como, em parte, em interesse próprio.

Uma classe social, como a classe média brasileira, que explora os excluídos sociais em serviços domésticos que lhes permitem poupar tempo livre para incorporar ainda mais conhecimento e mais capital cultural para a reprodução indefinida de seus privilégios – enquanto condena os excluídos à reprodução de sua própria miséria – pode “posar” de humana, corajosa e virtuosa, ao sair às ruas para condenar sempre um “outro” que não nós mesmos. O privilégio, afinal, precisa ser justificado ou tornado invisível para se reproduzir.

A classe média “deseja” acreditar nesse “conto de fadas”, porque ele transforma milagrosamente sua extraordinária “irresponsabilidade social” – uma classe dominante que sequer percebe as necessidades de 80% de seus compatriotas condenados a uma subvida – em “heroísmo”.

A abissal desigualdade brasileira não humilha e desumaniza apenas os excluídos sociais que perfazem ainda 30% da população. Não existe problema real no Brasil que não advenha de sua monumental desigualdade: (in)segurança pública, gargalo da mão de obra qualificada, escola e saúde pública de má qualidade. O que distancia o Brasil das sociedades que admiramos não é a corrupção, que é um problema real em qualquer lugar. O que nos afasta das sociedades “moralmente superiores” é que exploramos, aceitamos e tornamos fato natural e cotidiano conviver com gente sem qualquer chance real de vida digna e sem termos nenhuma culpa nisso.

O que os endinheirados controlam

Mesmo a parcela não crítica desta classe também é vítima do “conto de fadas” brasileiro que ela própria defende. Afinal, a classe média é também explorada pelos “endinheirados”, o que se reflete na sua ansiedade pelo custo de vida crescente e insegurança social.

A classe média se escandaliza com os escândalos cotidianos fomentados pela mídia conservadora, mas sequer percebe sua espoliação cotidiana pela camada ínfima de endinheirados de uma das sociedades modernas de capitalismo mais concentrado e desigual.

O 1% de endinheirados não controla apenas a economia e a propriedade. Eles controlam também a imaginação dos 99% restantes ao deslocar o foco de atenção da distribuição desigual de riqueza e privilégio para o espantalho da “corrupção estatal” como causa de todos os males. A quem interessa, afinal, a estigmatização do Estado como ineficiente e corrupto – como se o nosso mercado de produtos e serviços caros de baixa qualidade fosse eficiente e virtuoso – se- não àqueles menos de 1% que podem transformar áreas de atuação do Estado em terreno de apropriação privada e de lucro? Refiro-me aqui às áreas duramente conquistadas pelas classes populares, como educação e saúde, que deve- riam independer do fato de se nascer ou não em uma família privilegiada. Hoje em dia, é a classe média que paga preços exorbitantes a serviços que poderiam e deveriam ser públicos e de boa qualidade e, ainda, sai às ruas para defender, como uma boa tropa de choque imbecilizada, os interesses dos seus algozes.

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